O inferno de Witzel
Em maio deste ano, uma reportagem de Crusoé mostrou a coincidência entre a investigação aberta pela Procuradoria-Geral da República de Augusto Aras sobre o governador do Rio, Wilson Witzel, e um dossiê que havia aportado dias antes no gabinete do presidente Jair Bolsonaro. Os elementos que fundamentaram o pedido de investigação da PGR não guardavam relação direta com o que fora descoberto àquela altura pelos promotores fluminenses, mas o objeto da apuração era exatamente o mesmo descrito no tal dossiê oferecido ao chefe do Planalto.
Ainda houve um pedido expresso do presidente da República, tão logo ele teve acesso ao material, para que fossem “tomadas providências”, no que o peso da determinação presidencial se encarregou por si só de fazer fluir. Era fundamental, como ainda é, averiguar a fundo todos os contratos emergenciais milionários celebrados pelo governo Witzel no enfrentamento ao coronavírus. Os culpados por eventuais ilícitos, obviamente, devem ser punidos. Mas não se pode deixar de lado a gravidade da associação entre uma coisa e outra, o que configuraria a tentativa do presidente da República de transformar a PGR, um aparato de estado, em instrumento político a serviço de seus interesses.
Da publicação da reportagem para cá, os lances e movimentos de Augusto Aras sugeriram que a conexão entre os anseios presidenciais e o voluntarismo do procurador-geral seria até maior do que se imaginava. Por isso, uma nova coincidência envolvendo aquele dossiê revelado por Crusoé em maio e a operação deflagrada nesta sexta-feira, 28, pela Lava Jato do Rio de Janeiro em conjunto com a Procuradoria-Geral da República, responsável por denunciar Witzel por corrupção passiva e lavagem de dinheiro e por afastá-lo do cargo por seis meses, não pode ser desconsiderada.
Noves fora a trama rocambolesca que indica a existência uma mão política na origem da apuração, não há dúvida de que as suspeitas precisam ser investigadas — e punidas. Ao que tudo indica, há no material que embasou o pedido de afastamento de Witzel do cargo uma fartura de provas contra ele. “Na operação de hoje nós nos vimos como no túnel do tempo. Velhos fatos envolvendo novos personagens”. Foi assim que o coordenador da Lava Jato no Rio de Janeiro, Eduardo El Hage, descreveu a operação deflagrada nesta sexta-feira, 28. A sensação de déjà vu fica evidenciada com a minuciosa descrição do suposto esquema e com os nomes dos demais alvos da denúncia: a advogada Helena Witzel, primeira-dama do estado, o ex-secretário Lucas Tristão, homem de extrema confiança do governador, e seis empresários que possuem contratos milionários com o governo fluminense.
A denúncia assinada por Lindôra Araújo diz que Witzel usou o escritório de advocacia da mulher para receber propina de fornecedores contratados pelo governo, mesmo expediente utilizado pelo ex-governador Sergio Cabral e a ex-mulher dele, a advogada Adriana Ancelmo, para assaltar os cofres do estado. Ao todo, afirma a PGR, a banca de Helena Witzel recebeu 554,2 mil reais entre agosto de 2019 e maio de 2020 de quatro empresas vinculadas a contratos com o governo do marido. Três deles pertencem ao grupo do empresário Mário Peixoto, acusado de operar o mesmo esquema de desvio de dinheiro nos governos de Cabral e Luiz Fernando Pezão, ambos presos pela Lava Jato por corrupção. As quebras de sigilo detectaram que Witzel recebeu ao menos 74 mil reais diretamente do escritório da mulher.
Se dependesse da Procuradoria-Geral, a cadeia também teria sido o destino de Wilson Witzel nesta sexta-feira, mas o ministro Benedito Gonçalves, relator do caso no Superior Tribunal de Justiça (ele próprio também já apareceu em tramas investigadas pela Lava Jato), entendeu que o afastamento do governador de seu mandato por 180 dias é o suficiente para impedir a continuidade da prática criminosa ou qualquer tentativa de obstrução das investigações. Agora, no lugar das fotos de Cabral e Pezão, é o retrato de Witzel que aparece no topo da pirâmide, como líder de uma sofisticada organização criminosa que se utiliza de velhos mecanismos para saquear o estado. A operação foi batizada de Tris in Idem, adaptação do termo jurídico bis in idem para dizer que o esquema estava se repetindo pela terceira vez.
Toda a articulação, segundo a PGR, foi conduzida pelo advogado e ex-secretário de estado Lucas Tristão, outro amigo do governador que também foi preso por decisão do STJ. Tristão era o homem de confiança de Witzel dentro do governo e empregou o governador em seu escritório de advocacia depois que o ex-juiz federal largou a magistratura, em março de 2018, para disputar a eleição. No período em que, embora estivesse em campanha, Witzel esteve vinculado ao escritório de Tristão, o advogado recebeu repasses de uma das empresas do grupo de Mário Peixoto, empresário que mantém mais de 180 milhões de reais em contratos com o governo do Rio. Para Witzel, o ex-secretário pagou 412,3 mil reais, segundo declaração do Imposto de Renda. A PGR considera que esses pagamentos de Peixoto a Tristão foram vantagens indevidas pagas de forma antecipada a Witzel, antes de ele ser eleito.
A denúncia contra o agora governador afastado foi robustecida pelo acordo de delação premiada assinado pelo ex-secretário de Saúde Edmar Santos com a PGR. Ele foi preso acusado de desviar dinheiro de contratos emergenciais para enfrentar a pandemia. Em um de seus anexos, o ex-secretário, que foi afastado do cargo em maio, após a primeira operação do Ministério Público para combater fraudes na Saúde, apontou detalhes sobre o funcionamento da organização criminosa e o envolvimento de novos personagens no esquema. Entre eles, Pastor Everaldo, presidente nacional do PSC, partido de Witzel. Segundo o delator, o governador entregou 15 mil reais em espécie a Pastor Everaldo um dia antes da Operação Placebo, deflagrada pela PGR e que fez buscas e apreensões na residência oficial do governador e no escritório de advocacia da primeira-dama.
Em duro pronunciamento ainda pela manhã, Witzel classificou a operação como mais um “circo” e disse estar sendo perseguido pela subprocuradora Lindôra Araújo por ela ser, segundo ele, bolsonarista. Lindôra é o braço-direito do procurador-geral da República, Augusto Aras, na área criminal. Há motivos para Witzel lançar suspeitas sobre uma eventual perseguição política emanada do Palácio do Planalto. Do mesmo modo que sobram razões para justificar as medidas tomadas contra ele no âmbito da operação desencadeada nesta sexta-feira, 28. A julgar pela parte conhecida da investigação, acomodado ou não na trincheira oposta à de Bolsonaro, o agora governador afastado tem muitas contas a prestar.
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