MarioSabino

O insustentável peso de Lula

23.04.21

Depois de assistir ao filmete de propaganda de Lula que circula nas redes sociais, no qual os anos do seu governo são mostrados como os bons tempos em que os brasileiros tinham “carne, cerveja e churrasco e o meu Chevette cheio de gasolina”, o meu definhamento pandêmico ganhou velocidade. Porque não se trata apenas de um filmete, mas da possibilidade cada vez mais concreta da reprise de um longa-metragem. E talvez da reprise da reprise, seguida de outras reprises.

Não vou elencar mais uma vez as desonestidades de Lula, apenas resumir a coisa toda numa metáfora propiciada pelo filmete: o neolulismo vende um Chevette cheio de gasolina numa estrada de terra esburacada, sem iluminação, com assaltantes à espreita na próxima curva. Uma estrada que não leva a lugar nenhum e é oferecida como rota alternativa a essa outra picada para a qual nos levou Jair Bolsonaro. Uma picada que só não é o fim da picada porque pode desembocar na de Lula.

Em meio ao aprofundamento do meu definhamento pandêmico — ao nosso –, veio-me à mente o início do romance A Insustentável Leveza do Ser, do tcheco Milan Kundera. O escritor discorre sobre a ideia do eterno retorno. Eis o trecho:

“O eterno retorno é uma ideia misteriosa e, com ela, Nietzsche dificultou a vida de filósofos: pensar que um dia tudo o que foi vivido se repetirá e que mesmo essa repetição se repetirá indefinidamente! O que significa esse mito louco?

O mito do eterno retorno afirma, pela negação, que a vida que desaparece uma vez por todas, que não volta, assemelha-se a uma sombra, é sem peso, está morta com antecedência, e tenha sido ela atroz, bela, esplêndida, esta atrocidade, esta beleza, este esplendor não significam nada. Não valem mais do que uma guerra entre dois reinos africanos do século XIV, embora 300 mil negros nela tenham encontrado a morte em suplícios indescritíveis.

Algo mudará nessa guerra entre dois reinos africanos do século XIV se ela se repetir um número incalculável de vezes no eterno retorno?

Sim: ela se tornará um bloco que perdura e cuja estupidez não terá remissão.

Se a Revolução Francesa tivesse de se repetir eternamente, a historiografia francesa seria menos orgulhosa de Robespierre. Mas como ela fala de algo que não voltará, os anos sanguinários não são mais do que palavras, teorias, discussões, eles são mais leves do que penas, não mais causam medo. Há uma infinita diferença entre um Robespierre que aparece apenas uma vez na história e um Robespierre que voltará eternamente para cortar a cabeça dos franceses.”

A efemeridade dos fatos, continua Milan Kundera, lhes mitiga. Tira-lhes o peso. Ele também cita Hitler como exemplo. Ao folhear um livro sobre o ditador nazista, o autor se vê enternecido porque, diante de certas fotos, lembra-se da sua infância, apesar dos horrores perpetrados por Hitler. “Essa reconciliação com Hitler trai a profunda perversão moral inerente a um mundo fundado essencialmente na inexistência do retorno, pois nesse mundo tudo está perdoado com antecipação e tudo é, assim, cinicamente permitido”, conclui Milan Kundera.

O neolulismo e suas garotas assanhadas tentam perverter essa lógica imoral do não retorno, imprimindo cinicamente leveza e reconciliação a uma repetição que já foi condenada. O veredicto, aqui, não é do Supremo Tribunal Federal, sempre revogável. É da história. Como a perversão da imoralidade representa mais imoralidade, a volta de uma farsa a torna necessariamente mais pesada. Livre, solto e de novo no poder, Lula se tornará ainda mais insustentável do que a simples reminiscência na qual já deveria ter se transformado. Um bloco que perdura e cuja estupidez não terá remissão tão cedo. Todo mundo na laje.

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