Agência Senado

O Partido da Propina

Em tempos de Lava Jato, legenda que protagonizou o mensalão e o petrolão pede dinheiro à luz do dia no governo Temer: empresários admitem ter sido achacados no Ministério da Saúde por "homem da mala" que usava um bunker na capital paulista para esconder propina
04.05.18

O PP, recém-rebatizado de Progressistas, está na origem do mensalão e do petrolão – os dois maiores escândalos da história do país. Peça fundamental do autoproclamado Centrão, aquela massa amorfa de siglas cuja característica principal é a disposição para apoiar qualquer governo que concorde em aquinhoá-las com cargos rentáveis, o partido que já foi conhecido por abrigar Paulo Maluf é hoje controlado com mão de ferro por um consórcio de parlamentares liderado pelo senador piauiense Ciro Nogueira. Investigado em quatro inquéritos da Lava Jato e denunciado ao Supremo como um dos chefes da quadrilha que assaltava os cofres da Petrobras, o senador foi alvo de uma operação na semana passada, sob suspeita de tentar calar uma testemunha. Apesar da folha corrida, o partido de Ciro só faz crescer. Ao final do último prazo para troca de legenda, foi um dos que mais se expandiram no Congresso. O segredo está justamente nos dividendos que o partido consegue amealhar com seu conhecido talento para aderir aos governos.

Até então aliado de Dilma Rousseff, o PP não hesitou em apoiar o impeachment da petista quando recebeu do MDB uma proposta tentadora: levar, entre outros postos relevantes da máquina federal, o Ministério da Saúde, com seu orçamento anual de 119 bilhões de reais. E, como era de se esperar, em uma amostra da coragem e da ousadia de seus comandantes, transformou a pasta em uma central de propinas. Replicou, sem reservas, o mesmo modelo de negócios que o fez ser engolfado pelas investigações do mensalão e do petrolão. Na trajetória rumo ao estrelato da roubalheira, o partido chegou a montar até um bunker para esconder dinheiro sujo.

O caso que Crusoé revela a seguir é inquietante por mostrar que, com a Lava Jato em plena atividade, muita coisa segue como antes em Brasília. Na segunda metade de 2016, pouco depois de o PP assumir seu novo front na Esplanada, dois sócios da empresa paulista Semina, fornecedora de preservativos femininos para o Ministério da Saúde, foram procurados por um certo Davidson Tolentino. Amicíssimo de Ciro Nogueira, Tolentino tinha acabado de assumir o cargo de diretor de logística, a partir do qual controlaria todos os pagamentos da pasta, de compra de seringas a contratos bilionários com fornecedores de vacinas e medicamentos. A Semina tinha faturas a receber e seus donos, Dimitri Moufarrege e Geraldo Mattar Júnior, haviam procurado os burocratas do ministério na tentativa de regularizar os pagamentos. O pedido foi logo encaminhado a Tolentino, que passou a cuidar do assunto pessoalmente. Afinal, dinheiro é com ele. Falando em nome do PP, o novo “dono” do pedaço, ele mais do que depressa procurou os empresários. Queria conversar. A abordagem já começou estranha. Primeiro, por telefone, Tolentino pediu para encontrá-los pessoalmente. E fora (na verdade, bem longe) do ministério.

O encontro foi marcado para um hotel em São Paulo, nas proximidades da avenida Paulista. Tolentino foi logo anunciando o motivo do cuidado: queria fazer um “alinhamento financeiro”, segundo os empresários admitiram à reportagem, em conversas devidamente gravadas.  Em outras palavras, queria propina. “Ele falou: ‘Agora com o PP as coisas mudaram (…) Eu assumi o Departamento de Logística e queria fazer um alinhamento’”, diz Geraldo Mattar, o sócio que foi encontrá-lo no hotel. A mensagem era clara: em nome do PP, Tolentino avisou que seria preciso acertar um percentual para o partido caso os empresários quisessem de fato receber as faturas que estavam em aberto no ministério. “Eu já sabia que não ia vir coisa boa”, afirma Mattar. “Isso infelizmente é uma praxe no país. A gente sempre evita ter contato próximo para não dar abertura a esse tipo de negociação. Dar corda para essa turma é difícil, porque você já cria um vínculo”, prossegue. Tanto Mattar quanto Moufarrege garantem que não toparam o acordo, mas, sob pena de confessarem um crime, não disseram tudo. Pessoas que a partir de Brasília acompanharam de perto o desenrolar do achaque contaram a Crusoé, sob o compromisso de terem a identidade preservada, que tudo foi jogado às claras. Tolentino foi cristalino ao falar em nome da cúpula do PP: “Vocês foram escolhidos pelo partido como parceiros. Mas precisam nos ajudar. A gente está sem dinheiro”. A conversa, inicialmente cifrada, logo evoluiu para os números. Os empresários teriam que dar 3 milhões de reais de “entrada” mais 5% sobre cada pagamento a ser liberado. Embora afirmem que não pagaram um tostão sequer de propina, os empresários conseguiram o que queriam. Eles terminaram o ano de 2016 com as faturas devidamente quitadas: a empresa recebeu, ao todo, 41,2 milhões de reais do ministério.

Ciro Nogueira e Davidson Tolentino em uma festa em Brasília: o “homem da mala” do PP é parceiro do senador no trabalho e fora dele (Reprodução)
O procedimento se tornou um padrão no ministério. O relato do achaque à dupla de empresários é replicado, com pouquíssimas diferenças, por outros fornecedores da pasta. Grandes laboratórios acostumados a fechar contratos bilionários para fornecimento de remédios fizeram chegar mais de uma vez ao Palácio do Planalto queixas de que estavam sendo alvos do “jeito agressivo” de administrar do PP. O que o Planalto fez? Nada. As queixas revelam que se trata, na verdade, de um método – um método que começa justamente com convites para conversas reservadas em hotéis e, depois, parte para o pedido explícito de propina. Se a prática não chega a ser uma inovação no universo brasiliense, com o PP no Ministério da Saúde os canais para quem topa pagar para se beneficiar ficaram, digamos, mais azeitados. O trânsito de lobistas na pasta foi amplificado. Com destaque para alguns, de estimação. É o caso de Silvio Assis, conhecido nos subterrâneos de Brasília por facilitar a convergência entre interesses privados e interesses de políticos sempre dispostos a estender a mão. Até recentemente, ele tinha acesso livre ao gabinete de Ricardo Barros, que deixou o posto de ministro no mês passado para se candidatar nas próximas eleições. Na companhia de empresários interessados em estreitar os laços com o ministério e com o PP, o lobista entrava quando queria no gabinete – com direito a acesso livre pela portaria privativa do ministro, onde não é preciso deixar registro.

No lugar de Ricardo Barros, o PP colocou Gilberto Occhi, ex-presidente da Caixa, no Ministério da Saúde. Trata-se de um personagem que estreou com destaque na Lava Jato – um delator contou que Occhi tinha uma “meta de propina” a ser batida no banco em favor do partido.  A troca no ministério, por óbvio, foi autorizada pelo presidente Michel Temer a partir de um pedido de Ciro Nogueira. Importante dizer que Occhi, formado em direito e servidor de carreira da Caixa desde a década de 1980, nunca teve qualquer experiência na área de saúde – mas, evidentemente, isso não importa para o PP. Na mudança, algumas peças-chave do partido foram mantidas em seus postos. Davidson Tolentino, o diretor de logística, aquele que procurou os empresários para fazer um “alinhamento financeiro”, foi uma delas. Além de amigo de Ciro, Tolentino integra uma turma cara ao partido e que, antes de chegar à Saúde, ocupou cargos importantes na CBTU, a Companhia Brasileira de Trens Urbanos. A CBTU foi feudo do PP no governo Dilma. Quando a sigla assumiu finalmente o controle do Ministério de Saúde, a turma foi transferida, como se houvesse alguma afinidade entre trilhos, trens, vagões e saúde pública. Tolentino, o homem do “alinhamento”, foi aboletado em um cargo estratégico mesmo já tendo aparecido nas investigações da Lava Jato. Em depoimentos prestados aos investigadores, ele surge exercendo exatamente o papel que fez na conversa com a dupla de empresários em São Paulo: operador de Ciro Nogueira e “homem da mala” do PP. Sim, senhores, “homem da mala”.

Quem falou à Lava Jato sobre o protagonismo de Tolentino foi a mesma testemunha que, segundo a Polícia Federal, Ciro Nogueira tentou comprar na ousada ofensiva que originou a operação da semana passada. Em depoimento, José Expedito Almeida, ex-assessor de Ciro Nogueira e de outros astros do partido, revelou a existência de um bunker em São Paulo onde o PP chegou a esconder, de uma só vez, 5 milhões de reais. Cabia ao próprio Expedito, como funcionário de confiança, levar e buscar dinheiro no esconderijo, que servia a vários dirigentes do partido – entre eles, o próprio Ciro Nogueira. O bunker funcionava em um apartamento no Itaim Bibi, em São Paulo. Para provar o que disse, Expedito entregou às autoridades uma mala cinza com 206 documentos. Crusoé teve acesso ao material. Um dos documentos é uma procuração assinada por Ciro Nogueira, em que o senador dá a Expedito poderes para administrar o imóvel.

O depoimento de Expedito à polícia: ele fala do apartamento-bunker, do             arrecadador do PP e das vezes em que entregou dinheiro a Ciro Nogueira
O bunker em São Paulo era uma espécie de posto de coleta. A missão de Expedito era receber o dinheiro, guardar e depois se arriscar em voos para distribuir as malas. Ele seguia um manual: diz que era possível levar até mil cédulas em uma única viagem, usando malas e os bolsos. Com sorte, conseguia transportar até 100 mil reais de uma vez. Houve ocasiões em que ele teve de fazer várias viagens para completar o serviço. Em algumas oportunidades, o encarregado de entregar o dinheiro a Expedito, segundo o depoimento, foi Davidson Tolentino – aquele mesmo, o homem do “alinhamento”, que hoje ocupa o cargo de diretor de Logística do Ministério da Saúde. Funcionava assim, de acordo com o testemunho: Tolentino arrecadava a propina, repassava a Expedito e Expedito, por sua vez, se encarregava da tarefa de guardar a bolada no bunker e, sempre que necessário, fazer a distribuição aos destinatários finais. À Polícia Federal, Expedito contou que só a Ciro Nogueira já fez entregas de valores que, somados, chegam a quase 1 milhão de reais. Outro parlamentar que ele cita como beneficiário é o deputado pernambucano Eduardo da Fonte, o Dudu da Fonte, também chefão do PP e também investigado na Lava Jato. Expedito menciona coletas e entregas de dinheiro ocorridas no período em que a Lava Jato já estava na rua.

Embora investigado, Ciro Nogueira – assim como seu parceiro Dudu da Fonte – não responde a nenhuma ação penal decorrente da Lava Jato até hoje. A denúncia apresentada ao Supremo pela Procuradoria Geral da República contra o chamado “quadrilhão do PP” não tem nem previsão de julgamento. Expedito, o homem da mala que administrava o bunker, teve que ser incluído no programa de proteção a testemunha. Já Davidson Tolentino, o arrecadador e amigo in pectore de Ciro, continua firme e forte como diretor do Ministério da Saúde. E, muito em breve, pode ganhar uma bela promoção. A pedido de Ciro, ele foi escolhido pelo presidente Michel Temer para ocupar uma diretoria da ANS, a Agência Nacional de Saúde Suplementar. Se tiver o nome aprovado pelo Senado, ele terá um mandato de três anos. E fará a ponte entre o poder público e as empresas que administram planos de saúde. Com a bênção do PP, o partido que, com o senador Ciro Nogueira no comando, integrou o último governo, integra o atual e seguramente tentará integrar o próximo. Que tal?

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