Divulgação"Se tem uma coisa que o Guedes tem a caneta para fazer e não depende do Congresso é baixar as tarifas de importação"

‘O que importa é o poder de compra’

O diretor do Instituto Mises, Helio Beltrão, elogia a intuição liberal de Jair Bolsonaro, mas faz reparos às declarações de Paulo Guedes sobre a desvalorização do real frente ao dólar
14.02.20

Engenheiro e administrador com MBA pela Universidade de Columbia, em Nova York, Helio Coutinho Beltrão, de 52 anos, é uma das principais cabeças da direita do Brasil. Em 2005, ele foi um dos fundadores do Instituto Millenium, ao lado do atual ministro da Economia, Paulo Guedes. Dois anos depois, retomou um antigo projeto e fundou o Instituto Mises, que promove as ideias do economista austríaco Ludwig von Mises.

“O Millenium está mais sintonizado com o liberalismo da geração passada, que alguns identificam como o neoliberalismo. É uma mistura entre permitir o livre-mercado e uma série de intervenções pontuais governamentais”, diz. “O Mises advoga o liberalismo clássico, que acha que escolas e hospitais, por exemplo, não devem ser geridos pelo governo.”

Beltrão se autointitula um anarcocapitalista. Para ele, mesmo funções ligadas à segurança não deveriam ser delegadas ao governo. “Quando se bota um monopólio que pode tirar a sua propriedade, na forma de impostos, para promover a segurança, a tendência é que isso não seja feito adequadamente.”

O filho do economista Hélio Beltrão, ministro do Planejamento do governo Costa e Silva, divide seu tempo entre o Mises, onde dá aulas de mentoria financeira, e a editora que fundou, a LVM. Também é conselheiro no Grupo Ultra, na Metalfrio e na Copasa. De seu escritório, a uma quadra da Avenida Faria Lima, em São Paulo, ele conversou com Crusoé.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que câmbio alto é bom para todo mundo. É mesmo?
As pessoas não se dão conta de que o câmbio mais alto deixa todo mundo mais pobre. O que importa, para todos nós, é o nosso poder de compra. E o Brasil não é o centro do mundo, como alguns acham. Todos esses produtos que a gente usa são feitos de commodities internacionais, de gente que estuda no resto do mundo, com tecnologia de outros países. Ainda que sejam produzidos localmente, seus custos estão impactados pela moeda forte. Quando o dólar sobe, a tendência é que todos esses materiais fiquem mais caros. Aí, nós perdemos poder de compra. No fundo, a gente quer uma boa educação para os nossos filhos, mas a mensalidade vai ficar mais cara. Como toda medida como essa (desvalorização da moeda), há sempre um vencedor. No caso, é o exportador. Mas o empresário que é importador perde. O cidadão perde. O consumidor perde. Aquele empresário que não sabe se importa ou exporta ou faz os dois também perde, porque seu custo vai subir. O que Guedes faz é um raciocínio neomercantilista e cepalino.

Karime Xavier/FolhapressKarime Xavier/Folhapress“Empresário chinês paga por um computador um terço do que o brasileiro paga”
Como assim?
O mercantilista acredita que a economia é um jogo de soma zero: um ganha e outro perde. Mais do que isso, ele acha que o que traz prosperidade é a acumulação de reservas, seja de ouro ou de dólar. Quem destruiu isso foi o Adam Smith. Ele disse que o que gera prosperidade é a divisão do trabalho, acúmulo de poupança, investimentos e troca voluntária. Quando digo cepalino me refiro à Cepal, um think tank latino-americano sediado em Santiago, no Chile, que foi muito importante nos anos 1960. A Cepal era desenvolvimentista, mas na verdade seus integrantes não desenvolveram nada. Eles achavam que a economia devia crescer pela atividade industrial interna. Fernando Henrique foi um dos seus principais nomes.

O sr. fundou o Instituto Millenium com o Paulo Guedes. É assim a cabeça dele?
Não. Eu sei que a cabeça dele não é mercantilista nem cepalina. Mas ele deu essas declarações. É difícil de entender. Talvez esteja pensando o seguinte: a inflação permitiu uma queda dos juros e o dólar subiu. Estão me perguntando sobre isso e eu preciso dar uma explicação. O correto seria ele não falar nada e deixar isso com o Banco Central, o que é o modus operandi no mundo inteiro. Ministro da Economia não deve falar sobre o câmbio porque isso pode ser interpretado como um afrouxamento monetário verbal. Toda palavrinha é interpretada como um direcionamento de política monetária. Quando o Guedes diz essas maluquices, ele está invadindo totalmente a seara do Banco Central. O mercado financeiro quer operar em cima disso e vai achar que o Banco Central não tem tanta autonomia. Isso é uma distorção generalizada do mercado financeiro. Ele cometeu um grande erro.

Há mais algum erro?
Ele disse também que o Brasil poderia aumentar as exportações e até substituir as importações. É um termo do Celso Furtado, da Cepal. A gente penou nas décadas de 1960 e 1970 por causa disso. Achava-se que a importação era ruim e que teríamos de substituir tudo com a produção local. Na época, havia barreiras comerciais. Substituição de importações? Isso não tem nada a ver com a cabeça dele. É um paradoxo.

Os integrantes do atual governo criam polêmicas o tempo todo. Em que medida isso tem impacto de fato?
Quando Jair Bolsonaro ou outras figuras do governo dão uma declaração, em geral eles fazem isso como parte da guerra de narrativas. Querem ganhar curtidas e polarizar. Pensam no capital político. Mas não necessariamente isso quer dizer que estão pensando em mudar a política pública. Um exemplo foi quando Bolsonaro disse que os governadores dos estados poderiam dar um exemplo e reduzir o ICMS do combustível. Se fizessem isso, o governo federal também cortaria os impostos. Foi um blefe. Nem os estados nem o governo federal  podem abrir mão de arrecadação. Bolsonaro sabe disso, e isso está no jogo de narrativas. Mas, quando está se falando de câmbio, não se pode brincar. Isso é política monetária. É um pilar da política geral do governo. Fundamental. E a regra é que o ministro da Economia não pode comentar sobre o câmbio.

O sr. está decepcionado com alguma área da economia?
Sim, com a abertura comercial. Bato palmas para o acordo com a União Europeia, mas até agora não mudou nada. Se tem uma coisa que o Guedes tem a caneta para fazer e não depende do Congresso é baixar as tarifas de importação. É preciso uma negociação com o Mercosul, mas os outros países já disseram que não serão um entrave. E o Brasil é o gorila pesado do Mercosul. Só precisa avisar e diminuir as tarifas. Não está havendo, pelo que eu sei, essa disposição. Alegam que primeiro é preciso recuperar a competitividade. Associações empresariais estão chiando. Mas essa é a mãe das reformas, porque isso torna o Brasil competitivo. O empresário chinês paga por um computador um terço do que o brasileiro paga.

Karime Xavier/FolhapressKarime Xavier/Folhapress“No mundo inteiro, a classe dos artistas tem um viés pouco liberal”
Além dos interesses corporativos, o que mais está sabotando o Paulo Guedes?
Acho que a máquina sabota. São pessoas que estão lá, são concursadas. Em tese, estão defendendo o interesse do Brasil, mas têm uma obsessão pelo controle, um apego a procedimentos e defendem perigos que só existem na cabeça deles. São os sabotadores do avanço. Veja o que aconteceu com o Apple Watch. O último modelo consegue fazer um eletrocardiograma de um ponto só. A Anvisa falou que de jeito nenhum. Considerou que era um aparelho de saúde e que teria de ser regulado por ela. Então a Apple não pode vender Apple Watch no Brasil com essa função habilitada. Além disso, a Anvisa se deu conta de que o safado do brasileiro poderia comprar lá fora e trazer para cá e, então, pediu para a Apple instalar uma função de geolocalização para impedir que essa função estivesse disponível. Não tem nada disso na lei brasileira. Foi uma regulamentação da Anvisa, que um burocrata de lá fez.

Jair Bolsonaro é um liberal?
Ele não tem o histórico de ser um liberal de origem. Sua natureza militar faz dele um nacionalista. Agora, acho que ele tem uma enorme intuição liberal. Enorme. Foi o único político que percebeu em 2013 e 2014 que havia dois grupos em ascensão no Brasil: os conservadores e os liberais. Os dois cartazes mais comuns na Avenida Paulista eram “Menos Marx, Mais Mises” e “Olavo tem razão”. Como não havia liderança política nos dois grupos, resolveu capitanear e agregar esses dois grupos. Na época, nem todo mundo percebeu essa coisa, que estava vindo de baixo há algum tempo. Ele, por ser contra o estatismo de esquerda, topou a parte liberal. Além disso, colocou um cara com autonomia para tocar isso, que é o Paulo Guedes. Talvez ele tenha agido de forma mais liberal que grande parte dos liberais ou neoliberais. Quando faz um comentário sobre o câmbio, por exemplo, Bolsonaro também diz que não vai dar opinião nas coisas do Paulo Guedes. Poxa, isso é uma posição de estadista. Ele diz que confia no ministro, que o acha um craque.

Tem muito brasileiro hoje se dizendo liberal, mas ainda tem muita gente procurando emprego público. A mentalidade mudou?
O brasileiro procura o que é melhor para ele. Nos últimos quinze anos, a melhor oportunidade para um cidadão comum era fazer concurso público, pegar um emprego com estabilidade e salário bem pago. Na época do Lula, o setor público começou a pagar melhor que o privado. Agora, os concursos estão todos suspensos. O que o Guedes diz é que 40% do funcionalismo irá se aposentar em alguns anos. A porta de entrada estará fechada. Então o brasileiro terá de se acostumar com outra coisa.

Este governo é liberal na área de comportamento?
Não vejo o presidente querendo mudar qualquer regra para tirar direitos de igualdade entre as pessoas. Ele não fala em tirar ou em dar direitos. Bolsonaro é contra a mudança da regra do aborto, mas não fala em acabar com os três casos permitidos na lei (risco de vida para a mãe, gravidez resultante de estupro e anencefalia fetal). Também não prometeu nada sobre homossexuais. Tudo o que ele fala nessa área não se traduz em propostas de mudança.

E a cabeça dos artistas brasileiros?
No mundo inteiro, a classe dos artistas tem um viés pouco liberal. O artista é um intelectual com microfone. Defino o intelectual como aquela pessoa que, por causa de sua especialização em um determinado assunto, acaba sendo entrevistado para falar de outros temas que não são da sua alçada. E as pessoas o escutam. Quando fala sobre essas outras coisas, ele vira um estadista. Quer dar direitos para todo mundo, sem perceber que outro vai ter de pagar a conta. Ele dá benefícios como se o dinheiro nascesse na grama da Esplanada dos Ministérios. Para o artista ou intelectual, todo mundo tem direitos. Mas obrigar alguém a pagar a conta não é uma atitude liberal. É muito raro um intelectual ser liberal.

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