O STF vai à guerra contra Bolsonaro
Bastaram poucos meses desde a posse para que ficasse evidente que o conflito é a gênese do governo de Jair Bolsonaro. Apesar das recorrentes queixas de aliados e de empresários incomodados com a instabilidade provocada por suas ações e declarações, o presidente da República desde sempre se guiou por polêmicas barulhentas. Em paralelo, pôs em marcha a conhecida cartilha que garante a sobrevivência política aos poderosos de plantão quando as coisas apertam: interferiu nos órgãos de controle e de investigação para se blindar de denúncias e se aliou à ala mais fisiológica do Congresso para não ser alvo de um processo de impeachment. Embora tenha flertado com alguns ministros nos últimos anos, a relação com o Supremo Tribunal Federal nunca foi pacífica. Bolsonaro e sua tropa sempre dispararam petardos contra integrantes da corte. A artilharia se intensificava quando ele se sentia afetado por alguma decisão. Agora, na esteira da cantilena bolsonarista contra o sistema eleitoral e dos ataques diretos do presidente a integrantes da corte, o STF resolveu responder de maneira inédita e entrou na guerra.
O embate que já havia se intensificado ao longo da semana, quando o próprio Supremo e o Tribunal Superior Eleitoral passaram a investigar o presidente pelas acusações sem provas de fraude nas urnas eletrônicas e pelas ameaças às eleições de 2022, atingiu seu ápice nesta quinta-feira, 5. O presidente do STF, Luiz Fux, subiu o tom de maneira nunca vista antes para responder a Bolsonaro. Em um breve e duro discurso no plenário, Fux suspendeu o encontro que haveria entre os chefes dos poderes e disse que já havia alertado o presidente em julho sobre “os limites do direito da liberdade de expressão” e do “necessário e inegociável respeito entre os poderes para a harmonia institucional do país”. Afirmou ainda que Bolsonaro tem “reiterado ofensas, ataques e inverdades” contra os colegas Luis Roberto Barroso e Alexandre de Moraes e que “quando se atinge um integrante (do Supremo) se atinge a corte por inteiro”. Na véspera, o presidente havia ameaçado agir fora dos limites da Constituição após ser incluído por Moraes, a pedido de Barroso, no rol de investigados do inquérito do fim do mundo, o mesmo que censurou Crusoé. Aquele já havia sido um lance inédito resultante do acirramento do conflito: um presidente da República, no exercício do mandato, investigado oficialmente pelo Supremo por suspeita de integrar uma organização criminosa empenhada em atacar as instituições republicanas.
Já estava configurado ali o quadro surrealista que retrata o Brasil destes dias. Com o presidente agindo insidiosamente contra a democracia e ameaçando atropelar o processo eleitoral do ano que vem, até o inquérito inconstitucional aberto por Dias Toffoli e entregue a Moraes para investigar supostas ameaças ao tribunal virou ferramenta aceitável. Atual presidente do TSE, Barroso tem sido o principal alvo dos ataques de Bolsonaro nos últimos meses, por causa do embate envolvendo a discussão sobre a adoção do voto impresso, defendido pelo presidente. O ministro já havia detectado a necessidade de uma reação mais incisiva e institucional às ameaças golpistas depois que Bolsonaro exibiu, na semana passada, conteúdos falsos em uma live transmitida pela TV Brasil, para reiterar as acusações de fraude nas urnas eletrônicas – mais uma vez, sem apresentar nenhuma prova.
O procedimento é considerado o caminho menos tortuoso para uma eventual punição a Bolsonaro, que logo depois viu seu nome ser incluído no inquérito conduzido no STF por Alexandre de Moraes. No despacho, Moraes relaciona onze crimes que podem ter sido cometidos pelo presidente, entre eles calúnia, injúria, difamação, incitação ao crime e associação criminosa. A lista inclui ainda dispositivos da Lei de Segurança Nacional, como “tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito” e “fazer, em público, propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social”.
Ao contrário da investigação conduzida por Moraes no STF, o inquérito no TSE pode resultar em punição para Bolsonaro independentemente da vontade do procurador-geral da República, Augusto Aras. No inquérito em curso no Supremo, o PGR teria que oferecer uma denúncia formal contra o presidente que acabou de indicá-lo para mais dois anos no cargo. Algo que é tido, hoje, como improvável. Já no caso da apuração eleitoral, a ser conduzida pelo gabinete do corregedor do TSE com poderes para quebrar sigilos e convocar testemunhas para depor, qualquer partido político tem oportunidade de utilizar as conclusões das apurações para mover uma representação contra Bolsonaro, na própria corte, por abuso de poder. Nesse caso, o presidente seria julgado pelo plenário do tribunal, composto por três ministros do Supremo (Barroso, Moraes e Edson Fachin), dois do Superior Tribunal de Justiça (Salomão e Mauro Campbell) e dois juristas.
Em mais um movimento que mostra o nível do cerco da cúpula do Judiciário a Bolsonaro, Luis Felipe Salomão pediu ao STF que compartilhe com o TSE provas obtidas nas investigações sobre os atos antidemocráticos e sobre o chamado “Gabinete do Ódio”, como ficou conhecido o grupo que a partir do Palácio do Planalto dispara ataques contra desafetos do governo. O material será anexado a duas ações eleitorais movidas pelo PT e pelo PDT em 2018 contra a chapa de Bolsonaro e de Hamilton Mourão por suposto abuso de poder econômico. As duas ações podem resultar na cassação da chapa presidencial. Embora esse caminho seja considerado pouco provável hoje, o compartilhamento das provas não deixa de representar mais uma ameaça ao futuro político do presidente.
A reação da corte eleitoral aos arroubos de Bolsonaro contra a realização das eleições sem a adoção do voto impresso foi planejada em conjunto por Barroso, Fachin, Moraes e Salomão em junho, assim que o corregedor do TSE notificou o presidente para apresentar as provas de fraudes nas urnas eletrônicas que ele dizia possuir. O prazo se encerrou na segunda-feira, 2, quando a cúpula do tribunal decidiu abrir o inquérito contra o presidente e Barroso fez seu discurso mais duro em resposta aos ataques. “Conspurcar o debate público com desinformação, mentiras, ódio e teorias conspiratórias é conduta antidemocrática. Há coisas erradas acontecendo no país e nós todos precisamos estar atentos, precisamos das instituições e da sociedade civil, ambas alertas”, conclamou. O apelo foi prontamente atendido. Em um manifesto publicado três dias depois, banqueiros, empresários, acadêmicos, políticos e artistas defenderam o sistema eletrônico de votação e repudiaram a ameaça à realização de eleições no ano que vem. Entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil, a OAB, e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB, fizeram o mesmo gesto.
Se o intuito dos ministros era enquadrar o presidente e forçá-lo a recuar no discurso golpista, o efeito imediato foi exatamente o oposto. Logo após a decisão de Alexandre de Moraes, que assumirá a presidência do TSE dois meses antes das eleições do ano que vem, Bolsonaro subiu o tom das ameaças. “O meu jogo é dentro das quatro linhas (da Constituição). Se começar a chegar algo fora das quatro linhas, eu sou obrigado a sair das quatro linhas, é coisa que eu não quero”, afirmou. Até mesmo os próceres do Centrão, como o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e o novo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, com quem Bolsonaro se consorciou para evitar um processo de impeachment no Congresso, já deram recados de que não estão dispostos a embarcar em possíveis aventuras autoritárias do presidente. Nesta semana, diante da escalada do conflito aberto entre Bolsonaro e o Judiciário, até uma ala das Forças Armadas fez questão de sinalizar ao Supremo que não chancela os arroubos antidemocráticos do Planalto.
Na última terça-feira, 3, o comandante da Aeronáutica, o brigadeiro Carlos Baptista Junior, tido como o mais bolsonarista entre os chefes das três forças, afastou qualquer possibilidade de ruptura institucional em um almoço com o ministro Gilmar Mendes, novo decano do STF. Gilmar, segundo o jornal Folha de S.Paulo, reiterou a defesa do sistema eleitoral e rebateu algumas das principais acusações feitas pelos bolsonaristas contra as urnas eletrônicas.
Eleito com a promessa de apoiar o combate à corrupção, na onda da Lava Jato, Bolsonaro não apenas operou para minar a operação como reabilitou, em postos-chave do governo, a ala fisiológica do Congresso que fora pilhada nos maiores escândalos da história do país. Sua inapetência, seu ímpeto golpista e seus destemperos verbais acabaram por naturalizar o que parecia impossível: além de dar legitimidade ao inquérito do fim do mundo, visto agora como tábua de salvação para a democracia, ele criou as condições para que Lula, condenado por corrupção e lavagem de dinheiro, fosse reabilitado politicamente. O desastre segue provocando danos. Só que agora as instituições parecem dispostas a dar a resposta necessária para impedir o pior.
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