Luis Macedo/Câmara dos Deputados

O velho novo

Um ano após a posse do Congresso, o mais renovado da história, os números mostram que os parlamentares novatos ainda não conseguem vencer alguns hábitos da velha política
14.02.20

O discurso de combate à velha política e de depreciação dos partidos catapultou a candidatura de boa parte dos novatos do Congresso Nacional. A eleição de 2018 registrou uma renovação recorde na Câmara dos Deputados e no Senado. Mas os ares frescos não mudaram as estruturas e práticas do Congresso como se imaginava – e como deveriam. Entre os neófitos, alguns seguiram os mais arcaicos receituários, caracterizados por gabinetes e gastos inchados. Outros sujeitaram-se à conjuntura outrora tão atacada, a fim de destacar-se nos trabalhos legislativos, relatar grandes temas e aprovar projetos. Para a maioria dos novatos, 2019 constituiu um choque de realidade. Quem dedicou o primeiro ano de legislatura a atacar o sistema e a esbravejar contra caciques do Congresso ganhou seguidores e audiência, mas se ressentiu da falta de poder de articulação.

A face mais clara da rendição ao status quo são os gastos da verba parlamentar, o chamado cotão. Crusoé fez um levantamento das despesas dos deputados, entre titulares e suplentes que em algum momento assumiram o mandato no ano passado. Separou os que já haviam exercido o cargo de federal no passado dos que pisaram na Câmara como representantes pela primeira vez em 2019. As estatísticas mostram o abismo entre o discurso e a prática. Entre os 282 parlamentares que haviam passado pelo cargo, o gasto total com o cotão foi de 95,1 milhões de reais, uma média de 337,4 mil reais por deputado. Os novatos que estrearam no Congresso no ano passado torraram juntos 80,2 milhões de reais, o que representa um valor médio de 313,6 mil reais para cada um – montante muito próximo do registrado pela turma da velha política.

A novata que mais recorreu à generosidade dos cofres públicos foi Jaqueline Cassol, do PP de Rondônia. Embora tenha um pé na política tradicional – ela é irmã do ex-governador e ex-senador Ivo Cassol, condenado por fraude a licitações – Jaqueline foi eleita em seu estado prometendo adotar novas práticas. Não foi o que se viu, no entanto. Estreou na Câmara com despesas de 474 mil reais. A bolada foi usada para fazer publicidade do mandato, comprar passagens aéreas, combustível, enviar cartas e alugar carros. A assessoria da deputada alega que não há ilegalidade nos gastos, mas garantiu que, este ano, “o planejamento seguirá outros modelos”. É o que se espera não só dela, como de outros que deixaram a bandeira da renovação desbotar logo no ano inaugural do mandato.

Os gastos excessivos de parlamentares repetem-se independentemente de matizes ideológicos e colorações partidárias. Marília Arraes, do PT de Pernambuco, chegou à Câmara no ano passado como representante do que tentou vender como “renovação petista”. Em 2019, ela gastou 433,6 mil reais da cota parlamentar. A principal despesa foi com bilhetes aéreos. Os gastos com passagens da deputada chegaram a quase 98 mil reais. Só em maio, o gabinete da deputada emitiu 24 bilhetes – alguns de ida e volta –, o que representa quase uma viagem por dia para ela e seus assessores. A petista também gastou até 10,8 mil reais por mês com o aluguel de carros, valor repassado a uma locadora de veículos localizada a 400 quilômetros de Recife. Assim como Marília Arraes, Coronel Chrisóstomo, do PSL de Rondônia, também desembarcou na casa com o discurso de combate à velha política. No ano passado, o policial militar fez despesas que somaram 455 mil reais. Só em abril, o seu gabinete emitiu 16 bilhetes aéreos. A preferência do parlamentar, contudo, foi pela contratação de empresas para divulgar atividades do seu mandato, como aluguel de outdoor em Rondônia, ao custo de 7,1 mil reais.

Os novos senadores também desfrutaram com abundância de recursos públicos. A reportagem analisou os gastos dos 54 parlamentares que iniciaram o mandato de oito anos em 2019 e gastaram dinheiro da cota. Entre os que já haviam passado anteriormente pelo Congresso Nacional, as despesas somaram 10,6 milhões de reais, uma média de 345,1 mil reais. Já os novatos usaram 4,3 milhões de reais no ano de estreia no Congresso, uma média de 226,5 mil reais por parlamentar.

A novata Marília Arraes, do PT, torrou R$ 98 mil com passagens aéreas
Desde a Odisseia, séculos antes de Cristo, Homero já constatava o encantamento por tudo o que se apresenta como novidade: “o número musical mais aplaudido era sempre o mais recente”, dizia. O “novo” pode magnetizar multidões, mas é preciso que a prática acompanhe a fama. Ninguém prega que o parlamentar não possa dispor de recursos para estruturar o mandato que lhe foi outorgado pelo povo. Mas excessos são injustificáveis. E o exemplo deveria vir de quem, durante a campanha, prometeu fazer diferente quando chegasse lá. Há casos bem-sucedidos de parlamentares que prescindiram de suas verbas de gabinete e, mesmo assim, conseguiram exercer o mandato a contento. Por exemplo, só no primeiro semestre do ano passado, oito deputados do partido Novo haviam conseguido poupar 5 milhões de reais em verbas da Câmara. Não há notícia de que a economia tenha gerado graves prejuízos ao exercício da função. Outros 45 parlamentares (28 deputados e 17 senadores) abriram mão de auxílios, entre os quais o famigerado auxílio-moradia – e, até onde se sabe, todos sobreviveram sem o recurso.

Outro levantamento feito por Crusoé mostra que, dos 5,3 mil projetos apresentados por deputados federais no ano passado, só sete foram apreciados e aprovados. E, entre esses, dois eram de autoria de parlamentares estreantes. Paula Belmonte, do Cidadania do Distrito Federal, e Luiz Lima, do PSL do Rio de Janeiro, conseguiram o feito graças a muita negociação com colegas. Eleito pelo mesmo partido de Jair Bolsonaro, Lima adotou estilo diferente da maioria dos correligionários. Não costuma protagonizar lives e vídeos com ataques à oposição e à cúpula da Câmara, conversa com colegas, independentemente de partidos, e tem uma visão crítica quanto à atuação parlamentar totalmente focada em redes sociais.  Graças à diplomacia, emplacou um projeto que facilita o divórcio de vítimas de violência. “O deputado tem duas opções: ou se torna alguém capaz de colaborar com as políticas públicas ou gasta tempo em redes sociais preocupado em se reeleger. Até dá para fazer as duas coisas, mas quem fica muito focado em fazer barulho corre o risco de não aprovar projetos e de não entrar nas grandes discussões”, diz Lima, ex-atleta da equipe olímpica de natação do Brasil. Para conseguir emplacar sua proposta, o deputado do PSL procurou os líderes partidários e Rodrigo Maia. “Ele é o presidente da Câmara. Não podemos perder oportunidades de fazer a diferença na vida dos brasileiros. E, para isso, é preciso conversar e negociar”, acrescenta.

Na Câmara, outros deputados de primeiro mandato buscaram apadrinhamento para conquistar espaço. Pelas normas vigentes, as vagas nas principais comissões são distribuídas pela regra da proporcionalidade: quanto maior a bancada da legenda, mais espaços ela terá. O comando desses colegiados e as relatorias de matérias importantes, no entanto, são definidos pelo presidente da casa. Maia costuma privilegiar partidos do Centrão e os da oposição que apoiaram sua eleição. Mas há também espaço para novatos que se aproximam dele. Foi o caso, por exemplo, dos deputados Tabata Amaral, do PDT de São Paulo, e Felipe Rigoni, do PSB do Espírito Santo. Os dois foram designados por Rodrigo Maia para cuidar de projetos na área social.

O deputado Marcelo Ramos, do PL do Amazonas, também teve de recorrer aos préstimos de Maia. Em seu primeiro mandato na Câmara, Ramos presidiu duas comissões especiais importantes: a da reforma da Previdência e, agora, do colegiado que analisa a PEC da segunda instância. Ramos diz ter feito o “dever de casa”. Logo após a eleição, veio a Brasília para conhecer Rodrigo Maia, que, àquela altura, era nome certo para o comando da casa. Para isso, contou com a ajuda do deputado Orlando Silva, do PCdoB paulista, o principal aliado do presidente da Câmara hoje na oposição. “Depois, mapeei quem eram os líderes e procurei os players principais”, conta Ramos a Crusoé. Em outras palavras, o deputado sabia que precisaria do apoio desses caciques políticos para conseguir espaço no curto prazo. O parlamentar do PL admite que muitas coisas só andam na casa com as bençãos de quem preside a Câmara.

Foi após ganhar a confiança de Maia que o também deputado de primeiro mandato, Geninho Zuliani, do DEM de São Paulo, conquistou a relatoria do novo marco legal do saneamento, um dos grandes temas debatidos na Câmara em 2019. Para emplacar a relatoria do pacote anticrime no grupo de trabalho composto para discutir as propostas do ministro da Justiça, Sergio Moro, o líder da bancada da segurança pública, também conhecida como “bancada da bala”, Capitão Augusto, seguiu o mesmo script. “Pedi a relatoria ao Rodrigo Maia, o que era uma coisa natural, já que o pacote tinha propostas totalmente relacionadas ao tema da segurança pública”, explica o parlamentar. O apoio também parte dos grandes líderes partidários, especialmente os do Centrão. A escolha de Domingos Neto, do PSD do Ceará, para relatar o Orçamento de 2020, por exemplo, teve a costura de Elmar Nascimento, líder do DEM.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéParlamentares da nova política recorrem a Rodrigo Maia por espaço na casa
Resta saber, em todos esses casos, o que foi negociado em troca. O problema nunca foi a política, mas a politicagem. Nem os normais acordos de bastidores, mas os conchavos inconfessáveis. O problema também não é o presidente da Câmara, qualquer que seja ele, ter poder. Mas como ele o exerce. Quem está à margem do jogo tenta se virar como pode. O líder do Partido Novo na Câmara, Paulo Ganime, lamenta que a influência da sigla seja hoje limitada. Mas diz que o fato de contar com uma “equipe técnica qualificada” e uma “bancada unida” faz com que a legenda lucre politicamente de outras formas. Segundo Ganime, as grandes vitórias do partido em 2019 foram a aprovação de temas defendidos pela sigla, como a reforma da Previdência, a MP da liberdade econômica, a abertura do mercado de aviação civil e o marco do saneamento. Há, de fato, algo de novo no Congresso. Mas, ao menos por ora, a velha política e os seus velhos hábitos continuam a ditar os rumos.

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