Fábio Motta/Estadão Conteúdo

Os segredos de Cabral

Crusoé revela o que o ex-governador do Rio conta em sua delação premiada sobre ministros do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Contas da União
14.02.20

A manhã do dia 29 de outubro de 2018, uma segunda-feira, trouxe outra realidade para Sérgio Cabral. Passado o segundo turno das eleições presidenciais daquele ano, pela primeira vez desde o início da década de 1990, quando entrou para a vida pública, o ex-governador do Rio se deu conta de que muito em breve não teria mais qualquer influência nem no governo local nem junto ao grupo que assumiria o governo federal. Estava sozinho, sem ter a quem recorrer para encurtar sua temporada na prisão em razão da descoberta dos desvios bilionários de que participou – ele já foi sentenciado a mais de duzentos anos de cadeia. Até então, Cabral negava peremptoriamente qualquer ligação com os esquemas investigados e atribuía sua desgraça aos rivais que ganhou na vida pública. A partir daquela manhã, porém, ele concluiu que não havia outro caminho a não ser assumir o passado criminoso e colaborar com as autoridades. Os primeiros resultados da mudança de postura do ex-governador vieram na forma dos seguidos depoimentos ao juiz federal Marcelo Bretas, a quem confessou uma parte dos crimes. Em paralelo, o emedebista começou a construir o acordo de delação premiada assinado com a Polícia Federal e homologado na última quinta-feira, 6, pelo ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal.

O acordo foi selado após várias negativas do Ministério Público Federal e ainda enfrenta resistências, especialmente do atual procurador-geral da República, Augusto Aras, que quer anulá-lo sob o argumento de que Cabral ainda está escondendo parte da fortuna que desviou. A colaboração não prevê nenhum tipo de benefício a Cabral em um primeiro momento – as benesses só virão se as informações reveladas contribuírem para investigações em andamento e outras a serem abertas. Para fechar o acordo, o ex-governador assumiu que os cerca de 380 milhões de reais encontrados em poder dos doleiros Marcelo e Renato Chebar, que atuavam como seus operadores financeiros, são provenientes de desvios. Com a admissão, os valores poderão ser devolvidos mais facilmente aos cofres públicos. Além disso, Cabral se comprometeu a entregar sua mansão em um condomínio de luxo em Mangaratiba, no litoral do Rio, joias e outros valores depositados em contas correntes ligadas a ele e a sua mulher, a advogada Adriana Ancelmo.

Em 20 anexos, Cabral contou ao delegado Bernardo Guidali a parte de seus crimes que envolve pessoas com foro privilegiado. Neste momento, ele tenta um outro acordo, este com os promotores do estado do Rio, no qual pretende relatar em mais de 80 anexos seus crimes enquanto exercia cargos públicos na esfera estadual. Crusoé teve acesso a uma parte do que Cabral relata. A partir de sua parceria com outro alvo da Lava Jato, o ex-presidente da Fecomércio Orlando Diniz, ele lança suspeitas sobre negócios escusos na cúpula do Poder Judiciário e enreda dois ministros do Superior Tribunal de Justiça – Napoleão Nunes Maia e Humberto Martins – nos esquemas de corrupção de que participou. Também constam dos anexos os nomes de ministros do Tribunal de Contas da União. Os casos passam pela contratação de escritórios, alguns de filhos de ministros, em troca da obtenção de decisões favoráveis em Brasília. Diniz, o ex-parceiro de Cabral que é peça-chave nas acusações que o ex-governador faz às excelências, foi preso por ordem do juiz Marcelo Bretas em fevereiro de 2018, no decorrer de uma investigação em que procuradores buscavam entender por que a entidade que ele presidia repassou cerca de 20 milhões de reais para a banca de Adriana Ancelmo, a ex-primeira-dama do Rio, e mais 180 milhões a outros escritórios. Como Crusoé mostra a seguir, a delação de Cabral começa a jogar luz sobre esses pagamentos.

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Os ministros do STJ

Sérgio Cabral afirma ter sido informado que Orlando Diniz, então presidente da Fecomércio do Rio, estava atuando para se proteger dos processos a que respondia no Superior Tribunal de Justiça. As ações questionavam a permanência dele no comando na entidade, posição da qual manejava uma verdadeira fortuna proveniente do chamado Sistema S. Diniz era o dono do pedaço. Foi presidente da Fecomércio de 2000 até ser preso, em 2018. A partir de 2012, ele se envolveu em uma disputa judicial com a Confederação Nacional do Comércio, a CNC. Era acusado de irregularidades na gestão das verbas que recebia do Sesc e Senac e chegou a ser afastado do cargo, mas por meio de uma liminar obtida no STJ voltou ao cargo em 2014. É nesse contexto que se inserem as informações do acordo de Cabral sobre os tribunais. O ex-governador afirma que, ao saber do desejo de Diniz de resolver os problemas no STJ, entrou na história para auxiliá-lo. E, depois, soube que Diniz pagou ao escritório do advogado Eduardo Filipe Alves Martins, filho do ministro do STJ Humberto Martins, atual corregedor nacional de Justiça, cuja atribuição é averiguar denúncias de malfeitos envolvendo magistrados de todo o país. Martins e o filho Eduardo já haviam sido citados na delação premiada do empreiteiro Léo Pinheiro, da OAS, mas nesse caso Edson Fachin arquivou a parte que os envolvia. Agora, na colaboração de Cabral, o capítulo que envolve o ministro foi homologado.

Com base no que diz ter ouvido do próprio Orlando Diniz, Sérgio Cabral afirma que a contratação do escritório do filho de Humberto Martins teria por finalidade obter uma decisão favorável de outro ministro do STJ, Napoleão Nunes Maia Filho. Ainda de acordo com o ex-governador, a contratação foi efetivada porque Diniz teria recebido informações sobre a possível influência de Martins em decisões de Napoleão, que naquele momento, em 2014, era relator de uma ação por meio da qual Diniz tentava retornar ao comando da Fecomércio. Para entrar no caso, o escritório do filho de Humberto Martins recebeu cerca de 20 milhões de reais. Não é possível estabelecer relação de causa e efeito entre uma coisa e outra, mas após uma parte do pagamento ser feita, e dias depois de Eduardo Martins entrar como advogado em um dos processos da Fecomércio, Napoleão Maia concedeu uma liminar favorável a Diniz e o reconduziu ao comando da entidade, em 22 de maio de 2014.

Ministro do STJ desde 2007, Napoleão ganhou os holofotes durante o julgamento da cassação da chapa Dilma-Temer no Tribunal Superior Eleitoral, onde tinha assento àquela altura. Enquanto o julgamento corria, o filho dele foi barrado na entrada do plenário ao tentar lhe entregar um envelope. O Antagonista registrou o episódio. E, de imediato, Napoleão protestou invocando a “ira do profeta” contra aqueles que ousavam lançar suspeitas sobre a sua integridade. Em uma cena incomum, de sua cadeira no plenário, tomado de raiva e ao microfone, levou as mãos ao pescoço sugerindo que seus detratores deveriam ser degolados. No mesmo discurso, o ministro também rechaçou informações de que havia sido citado nas delações de executivos da OAS e da JBS. “‘Com a medida com que me medem serão medidos, e sobre ele desabe a ira do profeta’. É uma anátema islâmica. Não vou dizer o que é. Vou fazer um gesto do que é a ira do profeta. É o que eu desejo, que sobre eles desabe a ira do profeta. Sou inocente de tudo isso, estou sendo injustamente, perniciosamente, sorrateiramente, desavergonhadamente prejudicado”, afirmou na ocasião.

Processos no TCU

Sérgio Cabral afirma ter indicado o advogado Tiago Cedraz para atuar em favor de Orlando Diniz nos processos a que ele respondia no Tribunal de Contas da União, o TCU. Tiago é filho de Aroldo Cedraz, ministro da corte e ex-presidente do tribunal. As informações prestadas por Cabral sobre Cedraz também se relacionam à disputa travada entre Diniz e a CNC. Como mostrou a edição 84 de Crusoé, em proposta de delação entregue ao Ministério Público Federal, o próprio Diniz já havia relatado a atuação do ex-governador emedebista na contratação do advogado e na defesa dos interesses da Fecomércio junto ao TCU. Em um dos capítulos, ele detalhou as negociações para a contratação de Cedraz e sua atuação junto ao pai no tribunal – o relato é similar ao que Cabral apresenta em sua delação. O contrato, firmado após o próprio ex-governador participar das tratativas, rendeu 13 milhões de reais ao filho do ministro do TCU. Sérgio Cabral afirma que os repasses milionários da Fecomércio ao escritório de Tiago Cedraz eram uma forma de garantir o apoio de seu pai, Aroldo, nos processos que corriam no tribunal e preocupavam Orlando Diniz.

Mais ministros

Sérgio Cabral também afirma em seu acordo de colaboração ter mantido reuniões com o ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União. Os encontros teriam sido registrados em agendas do político e, segundo ele, igualmente estão relacionados ao esforço para ajudar Orlando Diniz na disputa pelo comando da milionária Fecomércio. O ex-governador afirma que Bruno Dantas e outro ministro, Vital do Rêgo, passaram a receber pagamentos mensais de Diniz para “proteger” a entidade nos processos em curso na corte. Ligado no passado a Renan Calheiros, Dantas é visto como um dos principais adversários da Lava Jato no Tribunal de Contas. Foi dele, por exemplo, a ordem para que fosse feita uma devassa na Receita Federal após o vazamento de informação sobre investigações fiscais contra agentes públicos, entre eles, familiares e ministros de cortes superiores. Vital do Rêgo, por sua vez, foi citado em outros acordos de colaboração na Lava Jato e virou alvo de investigação na Procuradoria-Geral da República. Uma delas, sobre o suposto recebimento de propina à época em que era senador, foi arquivada pelo Supremo. Mais recentemente, em novembro de 2019, o ministro foi intimado a depor em uma investigação sobre pagamentos de propina pela JBS.

A mulher

Na última semana, pela primeira vez Sérgio Cabral confessou ao juiz Marcelo Bretas que sua mulher, a advogada Adriana Ancelmo, tinha conhecimento sobre os seus crimes e que sabia do caixa paralelo no escritório de advocacia em que ela era sócia. “Ela sabia que meus gastos eram incompatíveis com a minha receita formal”, afirmou. Adriana, em nota, negou. Em sua delação, Cabral vai mais além na acusação contra a primeira-dama. Ele diz que a contratação do escritório de Adriana Ancelmo pela Fecomércio de seu aliado Orlando Diniz teve relação com a necessidade de angariar apoio em decisões no STJ. Extraoficialmente, afirma, Adriana teria atuado inclusive no processo em que Diniz conseguiu se manter no comando da Fecomércio graças a uma liminar de Napoleão Maia.

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Crusoé procurou os citados na delação. Napoleão Maia, por meio da assessoria do STJ, afirmou que nunca falou com seu colega Humberto Martins sobre “qualquer processo dos referidos na matéria cogitada”. Ainda segundo a nota, o advogado Eduardo Martins “obteve sucesso em alguns pleitos e insucesso em outros, como faz parte de qualquer carreira”. “Além disso, nunca falei com Orlando Diniz na minha vida”, disse o ministro, de acordo com o texto. Humberto Martins afirmou não ter ciência sobre o acordo de Cabral, mas disse ter tomado conhecimento de que o Ministério Público Federal se negou a aceitar a delação por “inexistir credibilidade de boa-fé por parte do interessado” — no caso, Cabral. Indagada sobre a afirmação do ex-governador em relação à contratação do escritório de seu filho, a assessoria do ministro disse que não daria mais declarações. O ministro Vital do Rêgo, do TCU, respondeu que não iria comentar as acusações e atacou Cabral. Disse tratar-se de alguém com “reiteradas condenações criminais”. Seu colega de corte, Bruno Dantas, disse que não comentaria “injúrias movidas pelo desespero ou pela sordidez”. Até o fechamento desta edição, a assessoria do TCU não havia conseguido contato com o ministro Aroldo Cedraz.

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