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Poder paralelo

Como funciona o Escritório do Crime, a milícia do Rio cujo chefe foi morto em uma operação na Bahia. Os celulares apreendidos podem fornecer pistas sobre as conexões da organização com a política e com a polícia
14.02.20

O ex-capitão da PM Adriano Magalhães da Nóbrega morreu baleado pela polícia em um sítio no interior da Bahia, no dia 9, mas o seu fim não encerra as atividades do Escritório do Crime, como é conhecida a milícia que, segundo o Ministério Público, ele chefiava no Rio de Janeiro. Procurado desde o início de 2019, Adriano tinha uma rede de proteção para escapar da cadeia, segundo os promotores que o investigavam. Eles sustentam que o Escritório do Crime ainda conta com a participação de policiais da ativa e outros aposentados ou expulsos da PM. A confiança do ex-capitão em sua blindagem era tanta que ele indicou como testemunha de defesa, para depor a seu favor na Justiça, o dono da fazenda onde se escondia na Bahia. Telegrafou o seu paradeiro na certeza da impunidade.

Tudo corria bem para Adriano da Nóbrega até começar o cerco policial, no início deste mês. Alguns dias antes de morrer, ele disse ao próprio advogado que temia ser vítima de queima de arquivo. Achava que não queriam prendê-lo, mas assassiná-lo. De fato, se fosse pego com vida, Adriano teria muito para contar. Ele era bem mais do que um miliciano comum. O Escritório do Crime guarda segredos como a identidade de agentes públicos que garantiam proteção à bandidagem em troca de propina e de políticos que se elegem com votos dos currais eleitorais controlados pelas milícias. Parte disso ainda pode vir à tona. A polícia apreendeu 13 celulares com chips de diferentes operadoras no sítio onde Adriano estava. O material já chegou ao Ministério Público do Rio, que faz perícia nos aparelhos em busca de pistas e dos contatos da milícia.

A Secretaria de Segurança da Bahia ainda apura as circunstâncias da morte no sítio, encravado no município de Esplanada, distante 170 quilômetros de Salvador. Segundo os policiais que atuaram na operação, o ex-capitão reagiu à prisão com uma pistola austríaca, calibre 9 milímetros, e morreu atingido por dois tiros entre o pescoço e o tórax. A versão até aqui parece consistente, mas algumas suspeitas pairam sobre o caso.

Na quarta-feira, a mãe e duas irmãs de Adriano pediram autorização judicial para cremar o corpo. A Justiça proibiu porque o caso ainda não está esclarecido e a cremação impediria novas perícias no cadáver. Os promotores pediram exames minuciosos – incluindo o confronto das impressões digitais com os registros arquivados nos órgãos oficiais.

Raphael Muller/FolhapressRaphael Muller/FolhapressO local onde o miliciano foi morto: tiros a curta distância
O senador Flávio Bolsonaro colocou mais lenha na fogueira numa mensagem nas redes sociais. “Há pessoas acelerando a cremação de Adriano da Nóbrega para sumir com evidências de que ele foi brutalmente assassinado na Bahia”, escreveu. A relação entre os dois era antiga. Em 2005, então deputado estadual, Flávio homenageou Adriano com a medalha Tiradentes, a mais alta honraria da Assembleia Legislativa do Rio. À época, o policial estava preso acusado de matar um guardador de carros que denunciara as milícias. Adriano foi absolvido, mas acabou expulso da PM por envolvimento com o jogo do bicho em 2014. Logo depois, teria virado ele próprio um miliciano. O ex-capitão perdeu a patente, mas não o prestígio. Era próximo do policial aposentado Fabrício Queiroz e, com a intermediação dele, conseguiu empregar a mãe e a ex-mulher no gabinete de Flávio. As duas são investigadas no inquérito que apura o “rachid” supostamente operado por Queiroz durante o mandato do filho 01 do presidente Jair Bolsonaro. Flávio nega qualquer ilegalidade.

Em janeiro de 2019, o Ministério Público denunciou Adriano e mais 12 suspeitos, entre policiais e ex-policiais, por formarem organização criminosa. O cargo de maior patente entre os denunciados era de um major da PM que continua na ativa, mesmo preso num presídio federal. Os promotores afirmam que Adriano chefiava a milícia de Rio das Pedras, favela da Zona Oeste carioca.

A quadrilha ficou conhecida como Escritório do Crime pela diversidade de delitos que praticava. Geralmente, os milicianos dominam bairros e favelas para extorquir moradores. Cobram as mais diversas taxas para fornecer de gás de cozinha, internet, TV a cabo, transporte alternativo de vans e até cestas básicas. O Escritório do Crime foi além disso. Entrou também no ramo de grilagem de terra e passou a construir prédios, a seu modo, para faturar, expondo a risco os moradores – o desabamento de um desses prédios, na favela da Muzema, matou 24 pessoas em abril de 2019. A milícia ainda fazia agiotagem, ligações clandestinas de energia e, claro, pagava propina a policiais e a fiscais para evitar problemas com a lei. Também lavava dinheiro em restaurantes, lojas e, suspeita-se, na criação de cavalos, uma das paixões de Adriano da Nóbrega.

Em outra frente de negócios, o Escritório do Crime tinha uma agência de pistolagem para eliminar quem desafiasse suas ordens, incluindo os parceiros milicianos que cometessem erros. O MP fala em “vários homicídios”, sem citar um número preciso. Na ação penal contra Adriano, os promotores denunciam apenas um assassinato, mas o episódio dá uma ideia das atrocidades cometidas. A vítima, o miliciano Júlio de Araújo, atuava na quadrilha desde os 15 anos de idade, vangloriava-se de ter matado ao menos dez pessoas, mas cometeu um erro no último assassinato, em setembro de 2015: deixou que a polícia encontrasse o corpo na favela. A “falha” custou a vida do assassino no mesmo dia.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisQueiroz e Flávio Bolsonaro: mãe e ex-mulher de Adriano foram nomeadas na Alerj
O desenrolar do caso dá mostras do poder da milícia. Chamada a depor depois de apontar pistas sobre o assassinato, uma testemunha recuou do que havia dito na frente das autoridades. Mesmo com os chefes dos milicianos presos e Adriano foragido, ela recorreu à lei do silêncio. Disse que desconhecia a atuação da milícia na favela e que nada mais sabia sobre os personagens que citara antes. Para os promotores, foi intimidada, um forte indício de que o Escritório do Crime continua em franca atividade. As milícias costumam matar quem testemunha contra elas e, por isso, chegam a ser mais temidas até do que os traficantes de drogas.

Os milicianos ganharam força no Rio de Janeiro no começo dos anos 2000. A quadrilha de Rio das Pedras foi a pioneira, mas naquela época Adriano ainda não era o chefe. Tinha pouco tempo de polícia, dedicava-se a cursos de tiro e logo entraria para o Bope, a tropa de elite da PM.  Nos anos seguintes, a milícia ampliaria o controle de áreas dentro da cidade do Rio, principalmente na Zona Oeste. Um relatório do começo de fevereiro aponta que a penitenciária Bandeira Stampa, reservada a milicianos presos e que abriga atualmente 586 detentos, é comandada por ao menos 30 lideranças. As autoridades não têm estatísticas sobre as centenas de integrantes de milícias que ainda estão em liberdade. Um relatório da PM produzido em janeiro mostra que esses grupos vêm se associando ao tráfico de drogas — o inimigo virou parceiro.

Assim como os demais chefões de milícia, Adriano não dispensava a vida de luxo mesmo com a polícia em seu encalço. Ele alugou uma casa em um condomínio da Costa do Sauípe, no litoral baiano, onde passou o Réveillon com a namorada. No começo de fevereiro, a polícia cercou o imóvel, mas Adriano conseguiu fugir e deixou para atrás uma carteira de identidade falsa do Ceará. Após a fuga, o ex-capitão se hospedou na fazenda do pecuarista Leandro Abreu Guimarães, que promove vaquejadas, em Esplanada. Guimarães diria mais tarde, em depoimento à polícia, que passou a véspera do Ano Novo com Adriano, em Sauípe. Afirmou que o conhecia como criador de cavalos e não sabia de seu envolvimento com milícias. Documento obtido por Crusoé, porém, aponta uma contradição nessa versão: em 21 de outubro, Guimarães foi intimado a depor como testemunha da defesa de Adriano na ação penal sobre o Escritório do Crime. É um sinal de que ele sabia das atividades do ex-capitão.

Ao indicar o pecuarista como testemunha, Adriano acabou por oferecer ao Ministério Público uma pista sobre o seu paradeiro, no interior da Bahia. O advogado Paulo Emílio Catta Preta, que defendia o miliciano, disse que o depoimento do fazendeiro seria importante para provar que Adriano exercia atividade lícita de pecuária. As pistas foram aos poucos convergindo. A polícia foi à fazenda de Guimarães, mas o miliciano escapara na véspera. Ao ser ouvido após a morte de Adriano, o pecuarista afirmou que, na noite de sábado, o miliciano ficou nervoso ao receber um chamado no celular – depois se descobriu que a namorada dele, que havia ido visitá-lo em Esplanada, havia sido parada em uma blitz da Polícia Rodoviária Federal na volta para o Rio de Janeiro. Guimarães disse que o miliciano o ameaçou de morte e exigiu que ele o levasse até um sítio a 10 quilômetros de distância da fazenda. Na manhã de domingo, dia 9, a PM baiana cercou o local. Três policiais entraram na casa onde o ex-capitão estava escondido. Um deles carregava um escudo à prova de balas, atingido por disparos supostamente efetuados por Adriano, que, segundo a versão oficial, morreu em confronto. Tiros foram dados a curta distância.

Leandro Guimarães, o pecuarista que ajudou na fuga do miliciano, tornou-se peça chave da investigação. Ele pode ajudar, por exemplo, na descoberta dos negócios de Adriano na Bahia. Também pode fornecer pistas sobre os contatos que o ex-policial mantinha. Longe do lugarejo baiano onde o ex-capitão foi morto, no Rio os promotores agora têm a missão de escarafunchar tudo o que for possível nos celulares apreendidos e, quem sabe, avançar sobre os braços ainda vivos – e bem vivos – da milícia.

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