Telecatch supremo
A decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Tofolli, de suspender até o mês de julho a implementação do juiz das garantias durou bem menos do que a temporada de chuvas torrenciais típicas do verão brasiliense: apenas sete dias. Na quarta-feira 22, de maneira monocrática, o ministro Luiz Fux suspendeu por tempo indeterminado a nova figura criada pelo pacote anticrime, até que o plenário da corte se debruce sobre o tema. Mais do que escancarar a estrovenga jurídica na qual se transformou o juiz das garantias, o episódio mostra que o Supremo dos dias atuais vai bem além daquilo que um dia o ex-ministro Francisco Rezek definiu como um “arquipélago de 11 monocracias”. É um tribunal que vive uma guerra.
Enxertado pelo Congresso Nacional no pacote anticrime do ministro da Justiça, Sergio Moro, e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro, o novo modelo segundo o qual o juiz responsável pela instrução do processo fica impedido de comandar a parte final da ação e proferir a sentença, foi introduzido de maneira atabalhoada no já complexo sistema jurídico nacional. A precipitação acabou causando questionamentos de toda a sorte materializados em ações diretas de inconstitucionalidade que desembarcaram no Supremo no apagar das luzes de 2019. Por sorteio, Fux virou o relator. O ministro só não esperava uma pedra no meio do caminho. No caso, Dias Toffoli.
Em 15 de janeiro, o presidente da corte resolveu fazer o que lhe deu na telha: definiu um prazo de seis meses para a entrada em vigor dos dispositivos e impôs regras para a adoção do juiz das garantias, mesmo sabendo que Fux, relator do caso, assumiria o plantão no início desta semana. Além de decidir que a matéria era constitucional, Toffoli estabeleceu por vontade própria exceções à nova norma. Por exemplo, a lei não seria implementada em processos abertos com base na Lei Maria da Penha, em casos do Tribunal do Júri, que cuida de crimes contra a vida, e em ações criminais tramitando na Justiça Eleitoral. Segundo Toffoli, seriam processos nos quais a legislação e a tramitação eram “muito peculiares”. Fux sentiu-se vítima de um atropelo. O magistrado não apenas já indicava em dezembro que suspenderia o juiz das garantias, por considerá-lo uma colcha de retalhos de inconstitucionalidades, como conversou com Toffoli sobre o tema. “Disse a ele que, como relator, eu interviria na decisão que eventualmente fosse dada antes de eu assumir o plantão”, explicou o ministro, em entrevista à Globonews. Dito e feito.
Em resumo, Fux defendeu a magistratura ao dizer que não se pode aceitar o argumento generalista de que juízes tendem a favorecer a acusação. O alerta do ministro-relator é de que a nova lei pode favorecer a impunidade. “A instituição do juiz das garantias, combinada com a morosidade atual de muitos juízos criminais do país em virtude do assolamento de processos, pode fornecer também incentivos à impunidade ou, ao menos, prejudicar a duração razoável do processo – aumentando o tempo necessário para que prestação jurisdicional final ocorra”, afirmou o ministro, ressaltando que não cabe fazer comparação com o instituto em outros países, diante das singularidades do ordenamento jurídico brasileiro.
Manifestações contrárias e favoráveis à decisão de Fux ecoaram pela Esplanada. Pelas redes sociais, o ministro da Justiça, Sergio Moro, elogiou o posicionamento. “Sempre disse que era, com todo respeito, contra a introdução do juiz de garantias no projeto anticrime. Cumpre, portanto, elogiar a decisão. Não se trata simplesmente de ser contra ou a favor do juiz de garantias. Uma mudança estrutural da Justiça brasileira demanda grande estudo e reflexão. Não pode ser feita de inopino”, argumentou Moro. Do Congresso ressoou o coro de insatisfeitos. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, rotulou a medida cautelar do vice-presidente da corte como “desnecessária” e “desrespeitosa” com os parlamentares, com Toffoli e com Jair Bolsonaro, que havia sancionado a figura do juiz de garantias.
O ministro classifica como “suprema ironia” o fato de Dias Toffoli ter uma decisão cassada por um colega da corte. “Justo ele que é um grande caçador. E um caçador com ‘cê’ cedilha”, disparou o ministro. A ironia de Marco Aurélio tem endereço certo. No plantão judicial da virada de 2018 para 2019, Toffoli havia anulado em sequência três decisões suas: uma que suspendia prisões após condenação em segunda instância, outra que determinava a realização de eleições no Senado com voto aberto e uma terceira para sustar normas relativas à cessão de campos de petróleo. “Isso está se tornando cada vez mais comum e contribui para desacreditar a instituição. O Supremo sai muito desgastado. É um retrocesso que solapa a segurança jurídica”, reclama o ministro “caçado” por Toffoli.
Em 2010, o ex-ministro do STF Ayres Britto já havia cutucado a ferida, só que de maneira ainda mais explícita. “O que eu vejo aqui é certa competição surda, enrustida, latente, uma competitividade não assumida, que não tem sentido e é absurda. O Supremo não está a salvo de práticas reveladoras de uma certa pequenez de alma. Aqui e ali, um ou outro ministro precisa do confronto pessoal e da disputa de espaço para demarcar seu campo. Isso é meio mórbido.”
De acordo com o que se comenta nos bastidores da corte, há meses em que a relação entre Dias Toffoli e Luiz Fux estão estremecidas. Fux se considera preterido em decisões cruciais do tribunal. De acordo com O Antagonista, ele reclama, por exemplo, que não foi consultado a respeito da instauração do inquérito inconstitucional de Toffoli, o chamado inquérito do fim do mundo — aquele mesmo que censurou Crusoé, tem Alexandre de Moraes como relator e foi idealizado para blindar de críticas a cúpula do Judiciário. Ele é contra. Ao assumir o comando do STF, em setembro, Fux será instado a se posicionar oficialmente sobre a investigação. Desde já, sedimentam-se as diferenças entre os magistrados. O clima de confronto deixou o Supremo sob uma nuvem pesada de incertezas.
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