Adriano Machado/CrusoéFux: insatisfação com Toffoli já vem de algum tempo

Telecatch supremo

A decisão de Luiz Fux que derrubou a liminar de Dias Toffoli e suspendeu por tempo indeterminado a criação do juiz das garantias escancara um racha histórico na mais alta corte do Judiciário do país
24.01.20

A decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Tofolli, de suspender até o mês de julho a implementação do juiz das garantias durou bem menos do que a temporada de chuvas torrenciais típicas do verão brasiliense: apenas sete dias. Na quarta-feira 22, de maneira monocrática, o ministro Luiz Fux suspendeu por tempo indeterminado a nova figura criada pelo pacote anticrime, até que o plenário da corte se debruce sobre o tema. Mais do que escancarar a estrovenga jurídica na qual se transformou o juiz das garantias, o episódio mostra que o Supremo dos dias atuais vai bem além daquilo que um dia o ex-ministro Francisco Rezek definiu como um “arquipélago de 11 monocracias”. É um tribunal que vive uma guerra.

Enxertado pelo Congresso Nacional no pacote anticrime do ministro da Justiça, Sergio Moro, e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro, o novo modelo segundo o qual o juiz responsável pela instrução do processo fica impedido de comandar a parte final da ação e proferir a sentença, foi introduzido de maneira atabalhoada no já complexo sistema jurídico nacional. A precipitação acabou causando questionamentos de toda a sorte materializados em ações diretas de inconstitucionalidade que desembarcaram no Supremo no apagar das luzes de 2019. Por sorteio, Fux virou o relator. O ministro só não esperava uma pedra no meio do caminho. No caso, Dias Toffoli.

Em 15 de janeiro, o presidente da corte resolveu fazer o que lhe deu na telha: definiu um prazo de seis meses para a entrada em vigor dos dispositivos e impôs regras para a adoção do juiz das garantias, mesmo sabendo que Fux, relator do caso, assumiria o plantão no início desta semana. Além de decidir que a matéria era constitucional, Toffoli estabeleceu por vontade própria exceções à nova norma. Por exemplo, a lei não seria implementada em processos abertos com base na Lei Maria da Penha, em casos do Tribunal do Júri, que cuida de crimes contra a vida, e em ações criminais tramitando na Justiça Eleitoral. Segundo Toffoli, seriam processos nos quais a legislação e a tramitação eram “muito peculiares”. Fux sentiu-se vítima de um atropelo. O magistrado não apenas já indicava em dezembro que suspenderia o juiz das garantias, por considerá-lo uma colcha de retalhos de inconstitucionalidades, como conversou com Toffoli sobre o tema. “Disse a ele que, como relator, eu interviria na decisão que eventualmente fosse dada antes de eu assumir o plantão”, explicou o ministro, em entrevista à Globonews. Dito e feito.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéEm setembro Toffoli passará a presidência do tribunal para Fux, o atual vice
Valendo-se de uma ação da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, a Conamp, Fux transformou a peça jurídica de Toffoli em letra morta. Mais do que isso. No texto em que suspendeu por tempo indeterminado a implementação do juiz das garantias, teceu críticas — mesmo que veladas — ao presidente do tribunal e colega: “Ao contrário do Poder Legislativo e do Poder Executivo, não compete ao Supremo Tribunal Federal realizar um juízo eminentemente político do que é bom ou ruim, conveniente ou inconveniente, apropriado ou inapropriado. Ao revés, compete a este tribunal afirmar o que é constitucional ou inconstitucional, invariavelmente sob a perspectiva da Carta de 1988”, escreveu o ministro. Ele ainda acrescentou: “Trata-se de olhar objetivo, cirúrgico e institucional, que requer do juiz minimalismo interpretativo, não se admitindo inovações argumentativas que possam confundir as figuras do legislador e do julgador.”

Em resumo, Fux defendeu a magistratura ao dizer que não se pode aceitar o argumento generalista de que juízes tendem a favorecer a acusação. O alerta do ministro-relator é de que a nova lei pode favorecer a impunidade. “A instituição do juiz das garantias, combinada com a morosidade atual de muitos juízos criminais do país em virtude do assolamento de processos, pode fornecer também incentivos à impunidade ou, ao menos, prejudicar a duração razoável do processo – aumentando o tempo necessário para que prestação jurisdicional final ocorra”, afirmou o ministro, ressaltando que não cabe fazer comparação com o instituto em outros países, diante das singularidades do ordenamento jurídico brasileiro.

Manifestações contrárias e favoráveis à decisão de Fux ecoaram pela Esplanada. Pelas redes sociais, o ministro da Justiça, Sergio Moro, elogiou o posicionamento. “Sempre disse que era, com todo respeito, contra a introdução do juiz de garantias no projeto anticrime. Cumpre, portanto, elogiar a decisão. Não se trata simplesmente de ser contra ou a favor do juiz de garantias. Uma mudança estrutural da Justiça brasileira demanda grande estudo e reflexão. Não pode ser feita de inopino”, argumentou Moro. Do Congresso ressoou o coro de insatisfeitos. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, rotulou a medida cautelar do vice-presidente da corte como “desnecessária” e “desrespeitosa” com os parlamentares, com Toffoli e com Jair Bolsonaro, que havia sancionado a figura do juiz de garantias.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéMarco Aurélio: “autofagia” na corte
A autofagia é o processo biológico em que uma célula destrói seus próprios componentes. Um conceito complexo para leigos em estruturas microscópicas, mas que, como metáfora política, explica de maneira inteligível a batalha de poder e a divisão na Suprema corte brasileira. A analogia é frequentemente citada pelo ministro Marco Aurélio Mello, para se referir a ministros do STF que cassam decisões de colegas – fenômeno cada vez mais habitual no tribunal. O vaivém de posicionamentos sobre a adoção da figura do juiz das garantias, protagonizado esta semana pela cúpula da corte, reforçou a figura de linguagem. “Repete-se a autofagia no tribunal, que é péssima em termos de imagem da instituição e de segurança jurídica”, afirmou Marco Aurélio a Crusoé.

O ministro classifica como “suprema ironia” o fato de Dias Toffoli ter uma decisão cassada por um colega da corte. “Justo ele que é um grande caçador. E um caçador com ‘cê’ cedilha”, disparou o ministro. A ironia de Marco Aurélio tem endereço certo. No plantão judicial da virada de 2018 para 2019, Toffoli havia anulado em sequência três decisões suas: uma que suspendia prisões após condenação em segunda instância, outra que determinava a realização de eleições no Senado com voto aberto e uma terceira para sustar normas relativas à cessão de campos de petróleo. “Isso está se tornando cada vez mais comum e contribui para desacreditar a instituição. O Supremo sai muito desgastado. É um retrocesso que solapa a segurança jurídica”, reclama o ministro “caçado” por Toffoli.

Em 2010, o ex-ministro do STF Ayres Britto já havia cutucado a ferida, só que de maneira ainda mais explícita. “O que eu vejo aqui é certa competição surda, enrustida, latente, uma competitividade não assumida, que não tem sentido e é absurda. O Supremo não está a salvo de práticas reveladoras de uma certa pequenez de alma. Aqui e ali, um ou outro ministro precisa do confronto pessoal e da disputa de espaço para demarcar seu campo. Isso é meio mórbido.”

Lula preso: o apoio à Lava Jato é um dos divisores da crise interna na corte
Não se trata apenas de escaramuças pessoais, no entanto. No Supremo atual, há claras divergências de fundo jurídico-ideológico. Uma ala ganhou notoriedade por, alinhada com os preceitos da Lava Jato, mandar prender autoridades apanhadas em práticas de corrupção. A outra, por ser o caminho mais curto entre a porta da cela e as ruas. É composta pelo que se convencionou chamar de “ministros garantistas”. São os mesmos que planejam garantir a impunidade com o juiz das garantias. No imbróglio envolvendo a nova figura criada pelo Congresso no contexto do pacote anticrime, Toffoli uniu os dois aspectos: o pessoal e o ideológico — lembrando que foi o presidente da corte o principal responsável por derrubar a prisão em segunda instância, o que acabou livrando ex-presidente Lula da cadeia.

De acordo com o que se comenta nos bastidores da corte, há meses em que a relação entre Dias Toffoli e Luiz Fux estão estremecidas. Fux se considera preterido em decisões cruciais do tribunal. De acordo com O Antagonista, ele reclama, por exemplo, que não foi consultado a respeito da instauração do inquérito inconstitucional de Toffoli, o chamado inquérito do fim do mundo — aquele mesmo que censurou Crusoé, tem Alexandre de Moraes como relator e foi idealizado para blindar de críticas a cúpula do Judiciário. Ele é contra. Ao assumir o comando do STF, em setembro, Fux será instado a se posicionar oficialmente sobre a investigação. Desde já, sedimentam-se as diferenças entre os magistrados. O clima de confronto deixou o Supremo sob uma nuvem pesada de incertezas.

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