Reprodução"Era num predinho perto do Largo do Cambuci, uma quitinete não das melhores"

A garçonnière da Democracia

Era num predinho perto do Largo do Cambuci, uma quitinete não das melhores. Pensei: para alguém que dizem estar tão ameaçada, faz sentido esse muquifo. Pois entrei, subi, bati à porta, ela abriu
29.07.22

Tive um encontro com a Democracia. Ah, eu sei o que o amigo está pensando: que fui a uma dessas festas, comícios ou shows de anciões que tocam violão só de cueca e saiote de palha, com vinho vagabundo, refrigerante quente, salgadinho gelado e gente dançando com os braços para cima. Uma dessas festas em que o chão logo fica grudento, em que as mulheres pintam a cara como argentinas e o perfume no ar é um misto de cebola e cecê. Porque é isso – não é? – que se chama de encontro com a Democracia. Isso ou algum programa de TV cheio de gente trans.

Não, não foi isso. Foi um encontro com ela mesma. A Democracia. Em carne e osso. Ou em vapores abstratos, que sei eu. Um amigo veio me disse: olhe, vá a tal endereço, em tal dia, a horas tais, que ela vai estar lá te esperando.

Expressei ao amigo um certo incômodo. Veja bem, eu disse, eu não sou do tipo que frequenta garçonnières, e nem do tipo que faz com a Democracia o que se faz em garçonnières. Por quem me tomas? Aliás, por quem ela me toma?

O amigo me tranquilizou. Não era nada daquilo. A Democracia só queria conversar comigo. É uma coisa que ela faz com uns e outros. Chama, põe um disco do Ray Conniff baixinho na vitrola, te dá uma dose de uísque democrático (odiei-te, essas coisas) e troca umas ideia. E outra: quem era eu na fila do pão para pensar em besteiras com a Democracia? Alguém do Executivo? Alguém do Legislativo? Alguém do (pausa para o pelo-sinal) Judiciário? Eu que baixasse a minha bolinha e fosse com calma.

Baixei minha bolinha e fui. Era num predinho perto do Largo do Cambuci, uma quitinete não das melhores. Pensei: para alguém que dizem estar tão ameaçada, faz sentido esse muquifo. Pois entrei, subi, bati à porta, ela abriu. E, amigo, te digo o seguinte: a Democracia se parece com uma inspetora de alunos – se é que o amigo tem idade para saber o que é uma inspetora de alunos. Lá estava ela, um pouco acima do peso, um pouco acima dos cinquenta, de coque, óculos de lentes grossas em cima de olhos de dono de quitanda, sem maquiagem, com uma blusa de lã, uma saia grossa que lhe descia bem abaixo dos joelhos, meias que se pareciam com coadores de café e sapatos de homem. O único perigo que ela parecia correr era o de morrer solteira. Confesso, com alguma vergonha, que me perguntei se ela teria muitas varizes.

Mandou eu me sentar num banquinho (nem cadeira era). Não me serviu nada, nem sequer o tal uísque democrático, e já foi logo perguntando, como uma professora que pergunta quanto dá sete vezes oito:

— Você gosta de mim?

Levei os mesmos quatro segundos que levo para calcular sete vezes oito para dizer que sim, que gostava dela. Não soou sincero, mas não era necessariamente mentira: o gosto é uma coisa nuançada, é ou não é? Tem graus, tem paletas, que sei eu? Tem seus degradês. Direi ao amigo que, não sendo ela mulher de muitas cores, eu gostei dela em algum tom de sépia, já que os tons de cinza sugerem outra coisa. Aí ela foi em frente:

— Você me ama?

Amigo, que sinuca. Você numa garçonnière com uma senhora que se parece com uma das suas tias, e ela perguntando de amor. Bom, pensei em desespero, depende do tipo de amor. Amor filial. Amor avuncular. Amor ao elevado ideal. Ah, eu não tinha nenhum desses. E outra: então é esse tipo de ideia que a Democracia quer trocar? Ela não quer saber o que eu acho do rap, das pessoas gordinhas e de cabelos coloridos, dos funks cheios de palavrões, da ressocialização de traficantes, dos pronomes neutros? (Engraçado que quando a gente pensa em Democracia, pensa automaticamente nessas coisas. Engraçado.) Em todo caso, amor, ah, amor era impossível.

Fiquei quieto. Ela, claro, se ofendeu. Ordenou:

— Cai fora.

E eu caí fora.

Agora, que o amigo não me entenda mal: o fato de eu não ser capaz de amar aquela senhorinha de olhos duros e tornozelos enfaixados não quer dizer que eu não possa conviver com ela, ou que não reconheça o seu valor, a sua utilidade, até, se calhar, seus bons sentimentos; eu sou capaz sim, viu, sou muito capaz mesmo. Nem preciso ser muito pressionado para fazer a ela alguns elogios: que é séria, que é objetiva, que tem cara de ser boa harpista, que deve ter boa caligrafia, faz um belo ponto cruz e não erra nas contas.

O diabo, amigo, é que, poxa, com a Democracia a gente não se apaixona: no máximo, se conforma. Essa, aliás, é a receita do casamento feliz dos nossos avôs.

 

Orlando Tosetto é escritor

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  1. A democracia não atende mais nem na quitinete, já foi despejada e virou sem teto. A pobre senhora de olhos severos foi chantageada e obrigada a soltar da cadeia bandidos poderosos que ainda continuam a chantageá-la. E agora, em nome da honra e da defesa da velha lady, os mesmos bandidos que sempre a chantagearam tramam ações ainda mais espetaculares para que, para sempre, ela não seja nada além da imitação barata do que deveria ter sido.

  2. Maravilhoso texto, retrato autêntico da “Democracia Tupiniquim”, ou melhor do fundo fétido do poço onde se encontra o País, apelidado de “Direita”.

  3. Pensei que ia encontrar uma Sra. doente e acamada... Que bom que encontrou uma Sra. tipo INSPETORA e ainda INTEIRA... É no mínimo, uma esperança...

  4. Sou casada com argentino, portanto cidadã. Qual a peculiaridade em como se pintam as argentinas, cara?...

    1. Cara hermana seria com picanha da boa ou com chorizzo?

    2. . Qual é ? As argentinas não se pintam...

    3. ...elas não se pintam. É isso?

  5. A Democracia pode ser feia pra nós, brasileiros, que ainda não aprendemos a aprecia-la. Mas o povo americano, com toda certeza, tem uma outra visão do que seja ela. Tomara que consigamos um dia reconhece-la como uma mulher jovem, bonita, bem sucedida e digna de admiração! Nossa parceria vai nos fazer muito bem e nos trazer paz e prosperidade.

  6. Relato de um cara sagaz e corajoso, com ironia e verdade, descrevendo com simplicidade o encontro desajeitado, com a Democracia, esse ser esgotado e démodé, infelizmente!

  7. Ora, a Democracia, no país tupiniquim, é uma mulher de meia idade escravizada pelas vontades de seus senhores, donos do poder. Lamentavelmente dá a sensação de que, quem assiste a tudo, no máximo faz cara de que nada está acontecendo, assiste a tudo placidamente, desde o grito do Ipiranga, conformando-se em sustentar o bordel sem sequer, b

  8. Muito bom! Gostei muito. Se eu pudesse continuar a blague: alguém poderia ter te contado que essa Democracia do Largo do Cambuci é a brasileira. Uma democracia plástica, que usa sim muitas maquiagens, que jura que somos chefes de nossos representantes ao votar. Mas na verdade, com esse sistema eleitoral, somos apenas subordinados daqueles que tomaram o Estado desde sempre.

  9. A democracia em nosso país, não é nenhuma dama, nem uma velha senhora.É uma loja de conveniências.Os políticos, são clientes assíduos.Tem cartão preferencial.Não se leva em conta a reputação do cliente, mesmo que deturpam os verdadeiros valores humanos. Ali vale tudo. prevalece a lei de Gérson: levar vantagens em tudo. É tão bagunçada que às vezes parece a casa da mãe Joana. Há os Capa pretas, que sisudos, umbigos salientes, ditam as regras, acompanhados sempre com elegantes colarinhos brancos.

  10. Beleza mas sugiro uma visita no Centro Cultural Jane Córner em Brasília velho centro de encontros onde o poder se esbaldada c'as minas a "500 dólar" e promoviam belas negociatas de antanho na Brasília de Collor, Itamar e FHC ridiculamente substuída pelo AeroLula da Roze Noronha e suas malas de euros prá depósito no banco de Zeus o tal Banco Spritu Sanctus ... fim do reinado no Chivas 18 e chegada da branquinha 51 e lá vem tudo trá vêiz ... seguuuuuuuuura o pepino canelau votante e pagante.

  11. Talvez ela fique mais bem cuidada num Admirável Mundo Novo, depois de todas as catástrofes ou, o mais provável, contraditoriamente, pereça de vez e, seja substituída por uma 'nova e jovem moradora' que ainda não sabemos quem é. Porém, nenhuma das nossas atuais gerações a conhecerão.

    1. Texto espetacular, ORLANDO TOSSETO JÚNIOR, espetacular!!!

    2. Texto espetacular, ORLANDO TOSSETO JÚNIOR, espetacular!!!

  12. No Brasil penso que é uma jovem linda, porém maquiavélica, que vai tomar muita porrada na vida para virar uma linda e virtuosa mulher. Com as células tronco, se aplicadas corretamente, poderá se manter uma senhora atrativa. A renovação na política brasileira está em curso. Ninguém 🎶🎶🎶 segura a juventude do Brasil 🇧🇷🇧🇷🎼🎶🎶🎶🎶

  13. Meu caro amigo, você me fez lembrar da dona Lurdinha de cabelos encaracolados e rosto sério, que era a inspetora de corredor na época do ginásio. Ela colocava ordem e quando o assunto era mais sério, levava o aluno mal comportado até a sala do diretor. Bons tempos, que saudades. Ah, belíssima analogia com a democracia, parabéns pelo excelente texto e inspiração.

  14. Ainda ontem estava eu no Cambuci atrás de panelas. Cruzei com muita gente saindo do trabalho, com pressa e semblante cansado. Será q uma delas era a Democracia, q agora trabalha no Cambuci pra ganhar a vida? Bem provável…

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