Betinho Casas Novas/Futura Press/FolhapressSegurança pública: não é difícil encontrar exemplos do que dá certo

O falso e o verdadeiro sobre a redução dos homicídios no Brasil

Mais armas em circulação e "governança do crime" não são as causas de haver menos assassinatos. É o trabalho da justiça criminal que explica o fenômeno, assim como a demografia
08.07.22

A publicação recente do Anuário do Fórum Brasileiro da Segurança Pública (FBSP) de 2022 destacou a redução de 6,5% das mortes violentas intencionais no Brasil, entre 2020 e 2021. A boa notícia provocou uma corrida por explicações sobre suas possíveis causas. Armamentistas e governistas inundaram o debate nas redes celebrando a possível correlação entre o aumento do número de armas em circulação no país, observado nos últimos anos, e a redução das mortes violentas, enquanto especialistas se dividiram entre explicações igualmente simplistas e outras mais prudentes. Alegações de que a redução do número de homicídios no país deve ser atribuída ao avanço do crime organizado e da “governança criminal” – uma espécie de autorregulação do submundo do crime – foram improvisadas contra a hipótese armamentista de que “mais armas, menos crimes”. Entre os mais prudentes, vários lembraram que o fenômeno tem múltiplas causas e por isso é necessário proceder com cuidado na identificação de possíveis explicações. O que pretendo oferecer a seguir é um roteiro para navegar o debate.   

O Fórum Brasileiro da Segurança Pública é uma organização da sociedade civil que, desde 2007, tem prestado um serviço valioso de organização e divulgação de estatísticas criminais e da segurança pública no Brasil. A série histórica de mortes violentas intencionais publicada pelo Fórum tem como fonte as secretarias de segurança pública dos estados e a classificação adotada segue critérios jurídico-penais que diferenciam os homicídios dolosos, latrocínios (roubos seguidos de morte), lesões corporais seguidas de morte e mortes decorrentes de intervenções policiais. 

Quando falamos em homicídio, é muito importante levar em conta que  dinâmicas muito diferentes podem conduzir ao mesmo desfecho, a morte violenta. O feminicídio cometido por um marido ou um namorado violento não tem nenhuma semelhança com um homicídio decorrente de um conflito entre dois criminosos que disputam o controle de uma “biqueira” de drogas, o que também não tem semelhança como uma briga de facas num sábado à noite entre dois desconhecidos bêbados. 

Alguns homicídios têm características comuns e são bastante regulares quanto ao perfil das vítimas e dos agressores, o meio utilizado e a motivação. As disputas que envolvem o tráfico e o comércio de drogas abarcam constantemente disputas sobre territórios e dívidas, entre outras questões de natureza econômica, e opõem jovens da mesma idade, raça e nível educacional que participam de atividades ilícitas. Existem centenas de mercados ilícitos, além do das drogas: grilagem de terras, transporte ilegal de passageiros, extração ilegal de madeiras e minerais, contrabando de cigarros e agrotóxicos, tráfico de pessoas, falsificação e contrabando de eletrônicos, roupas e medicamentos. Em todos esses mercados, a violência é o recurso que regula os conflitos e permite defender os negócios contra os grupos rivais e a polícia. O mundo do crime organizado vive uma constante “corrida armamentista” e a violência é sua face mais visível.  Uma parte significativa, não sabemos exatamente qual, das mortes violentas no país responde a dinâmicas que têm motivação econômica envolvendo disputas nos mercados criminosos de bens e serviços.

Outra parte importante dos homicídios decorre de conflitos entre pessoas conhecidas (como é o caso do feminicídio) ou brigas entre estranhos que resultam na morte de um dos envolvidos. Os meios empregados geralmente são diferentes (há menos armas de fogo) e as circunstâncias e motivações não envolvem atividades econômicas ilícitas.  

Outros dois tipos importantes de morte violenta intencional decorrem de intervenções policiais e latrocínios. O latrocínio, apesar de ser muito menos frequente do que os demais tipos de homicídio (para cada 27 homicídios em 2021, ocorreu um latrocínio), cria uma forte sensação de insegurança na população, pois envolve uma vítima indefesa diante de um agressor violento, que age por motivação econômica. As intervenções policiais constituem um problema grave no Brasil:  13% das mortes violentas no país decorrem delas. 

Portanto, é muito importante reconhecer que, ao falarmos em mortes violentas intencionais, estamos agrupando fenômenos diversos na mesma categoria. Eventos diferentes têm, em geral, causas distintas e vale desconfiar das explicações que ignoram esse fato primordial. Nesse erro incorrem os defensores da hipótese da “governança criminal”. Eles argumentam que as mortes violentas caíram no país porque o crime aprendeu a se autogovernar e a fazer negócios de forma menos violenta, com o objetivo de maximizar seus ganhos, ou ainda, que o crime organizado negocia com os governos estaduais uma diminuição dos crimes violentos em troca de menos repressão. Talvez por seu apelo intuitivo, essa hipótese mobiliza apoiadores do atual governo e angaria uma legião de defensores em algumas áreas das ciências sociais e do jornalismo.   

Para que essa hipótese possa ser testada empiricamente são necessários dados de que hoje não dispomos. Seria igualmente imprescindível contar com uma rede de organizações criminosas atuantes em todo o país, poderosas o suficiente para funcionar como tribunais do crime, capazes de julgar disputas, impor sanções e garantir “direitos“. Há evidências de que esse tipo de organização pode surgir em contextos específicos, como presídios, áreas geográficas limitadas ou mercados ilícitos com poucos competidores. Mas, analiticamente, é pouco verossímil que o crime organizado seja capaz de regular a vastidão de negócios ilícitos que ocorrem no Brasil a ponto de fazer o número de mortes violentas diminuir.

As ações mais importantes de segurança pública, devido ao desenho constitucional do país, estão na órbita de responsabilidade dos governos estaduais. Os sistemas estaduais de justiça criminal – a soma de polícia, Ministério Público, Justiça e sistema penitenciário – estão atuando melhor porque estão aprendendo com o que dá certo no país. E não é difícil encontrar exemplos de políticas que têm dado certo nos estados. São Paulo reduziu contínua e consistentemente suas taxas de homicídio desde 2000 e Minas Gerais trilha o mesmo caminho. Pernambuco inovou na gestão com metas de desempenho. Santa Catarina evolui continuamente no treinamento e qualificação de sua polícia militar. O Distrito Federal avançou muito no uso de dados e informações para planejar o policiamento. O Ministério Público de São Paulo indicou o caminho no combate ao crime organizado. A lista de realizações é longa e ainda bastante desconhecida. Há, claro, temas sensíveis para a sociedade, que ainda esperam por ações efetivas por parte dos governos estaduais — como o controle da violência policial.  Mas, mesmo com dificuldades, são experiências como essas que sustentam minha hipótese preferida para explicar a redução dos homicídios.

As ações realizadas pelo sistema de justiça criminal podem facilitar ou dificultar o cometimento de crimes. Políticas eficazes de policiamento e investigação aumentam a probabilidade de punição e encarceramento, o que reduz o número de crimes e o risco de vitimização, tornando a sociedade mais segura.

Vale a pena pensar igualmente na importância de variáveis sociodemográficas. A composição etária da população é muito importante, pois jovens comentem muito mais crimes do que os adultos com mais de 30 anos. O Brasil está passando por uma transição marcante no século XXI. O percentual de pessoas abaixo de 30 anos de idade em 2012 era de 47,7%, passando para 42,3% em 2019. Isso atrapalha na previdência social, mas ajuda muito a segurança pública. As políticas sociais e educacionais têm seu peso. Criminosos  respondem a incentivos negativos, como os que estabelecem o sistema de justiça criminal. Também respondem a incentivos positivos: um aumento da renda, do emprego e da escolaridade média dos jovens podem tornar as atividades ilícitas menos atraentes 

Daniel Kahneman, Oliver Sibony e Cass Sunstein publicaram, em 2021, o livro Noise: a Flaw in Human Judgment, que trata das dificuldades que enfrentamos ao tentar explicar qualquer fato social. A busca pelas causas plausíveis de um fenômeno, argumentam os autores, é quase sempre bem-sucedida porque causas podem ser encontradas em nosso repertório quase infinito de fatos e crenças sobre o mundo.

Em qualquer área de investigação, no entanto, é necessário um tempo razoável até que hipóteses rivais possam ser devidamente testadas com base em dados empíricos. E mesmo quando confirmadas, as hipóteses continuam sujeitas ao escrutínio. Portanto, quando alguém apontar o aumento do número de armas ou o poder do crime organizado para explicar a redução das mortes violentas que vem acontecendo de forma intermitente desde 2017 no Brasil, respire fundo. Nosso cérebro evoluiu para ser intuitivo e rápido nas respostas. Podemos educá-lo a observar de forma lenta a realidade e construir inferências com menos ruídos e direcionamentos circunstanciais. Minha sugestão para se construir uma narrativa sobre a dinâmica das mortes violentas no Brasil começa por tentar entender o papel do sistema de justiça criminal e sua complexa engenharia.

Leandro Piquet Carneiro é professor do Instituto de Relações Internacionais e coordenador da Escola de Segurança Multidimensional da Universidade de São Paulo.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO