Carlos Fernandodos santos lima

O governo Jeca Tatu

05.02.21

A política é a condução dos negócios públicos para proveito de particulares.” Assim Ambrose Bierce em seu famoso Dicionário do Diabo – publicado nos Estados Unidos em 1906 — ironizava a atividade política americana daquela época. Entretanto, a política americana, especialmente em nível federal, mudou muito depois disso, tornando-se sólida e resistindo inclusive ao devastador governo Trump, que testou os limites éticos e legais da democracia.

Houve por lá um longo processo civilizatório de sujeição do interesse particular ao interesse público, que se iniciou com os pais fundadores ainda no século 18 e resultou em uma política capaz de produzir homens como Abraham Lincoln, Theodore Roosevelt, Franklin Roosevelt, John Fitzgerald Kennedy e Barack Obama – grandes políticos em momentos de dificuldades. Não se trata de uma democracia perfeita, obviamente, mas de longe é o experimento democrático mais bem-sucedido na história.

Aqui, entretanto, mais de cem anos atrasado, o mal do Brasil ainda é sua forma de fazer política. Vivemos sob o comando de homens e mulheres indignos de suas altas responsabilidades. As revelações da operação Lava Jato, queiram ou não seus detratores, mostraram que há muito de podre nesse sistema a que chamamos presidencialismo de coalizão — extensível para todos os níveis do nosso federalismo. As eleições de Arthur Lira na Câmara dos Deputados e Rodrigo Pacheco no Senado Federal nesta semana, regadas com mais de 3 bilhões de reais em verbas públicas, apenas confirmam que nossos representantes se preocupam exclusivamente com acesso a dinheiro público, poder e regalias — e nem estou falando aqui de corrupção pura e simples. Estamos voltando aos tempos do infame Centrão de Eduardo Cunha, de quem Arthur Lira era capataz.

Infelizmente nossa política vem sendo dominada por homens pequenos e venais, especialmente nos últimos 25 anos. Assim, quando os parlamentares escolhem como lideranças do Congresso Nacional pessoas como Calheiros, Cunha, Maia, Alcolumbre, Rodrigo Pacheco ou Arthur Lira, revelam apenas todo o sentido de suas atuações, pois são esses os representantes legítimos dessa baixa forma de fazer política. Duvido que se conte nos dedos de uma mão homens públicos hoje em atuação com vivência política, autoridade moral e poder para realizar mudanças em nossa política.

Na maior parte do tempo, os parlamentares bem-intencionados são escanteados das decisões e vivem de pronunciamentos vazios nas redes públicas de comunicação e nas redes sociais — quando muito conseguem 20 segundos em uma rede de TV ou um artigo em um jornal de circulação nacional. Foi-se o tempo de Ulysses Guimarães, Thales Ramalho, Franco Montoro, Leonel Brizola, Mário Covas, Miguel Arraes, Teotônio Vilela e tantos outros de esquerda ou de direita que encarnaram valores éticos e programas de governo — não estou dizendo que realmente fossem honestos, mas inspiraram gerações. Agora é pura desfaçatez, nem sequer disfarçando nossos políticos que fake news, dinheiro fácil e negociatas são o que importa.

Alguns vão dizer que política é assim mesmo, uma composição de interesses e poder. Talvez pior que o próprio sistema do toma lá dá cá seja ouvir isso. Mesmo articulistas e jornalistas bem informados repetem essa ladainha, pois nasceram e se criaram nessa realidade, aceitando como dado aquilo que não só é inaceitável, como é contingencial. A única forma de se aceitar composições é quando elas atendem o interesse público.

É claro que há milhares de interesses privados legítimos disputando espaço nas decisões públicas, mas a composição com eles só pode acontecer se houver o atendimento da finalidade pública da decisão. Está certo que isso pode parecer utópico, pois alguém mergulhado na escuridão pode acreditar que a luz cega. Albert Camus já dizia que “a política é constituída por homens sem ideais e sem grandeza”, mas em nenhum lugar precisamos que sejam desonestos e imorais como estamos acostumados por aqui.

A política no Brasil, e estou falando quando ela é considerada limpa e honesta, tem sido apenas um sistema que procura o dinheiro dos ricos para conseguir os votos dos pobres com a finalidade de proteger os primeiros dos últimos. Já na sua versão corrupta, trata-se do sistema em que uma classe de políticos profissionais se apropria das atividades do estado para revendê-las a interessados pelo melhor preço. Em nenhuma de suas duas versões brasileiras o sistema político se preocupa realmente com a população e suas necessidades. O estado não é um fim em si mesmo, mas um mecanismo contingencial e histórico que serve para atingir os fins públicos que, em uma democracia, constitui-se em fornecer ao povo ao menos educação, saúde, justiça e segurança. Mas aqui em nosso país isso não é verdadeiro.

Agora vemos o triunfo do Centrão e de sua política de tornar refém qualquer um que chegue à chefia do Poder Executivo. Esse agrupamento, amorfo como uma bactéria, tem justamente a capacidade desta de se adaptar ao hospedeiro que lhe garantir a sobrevivência, sejam FHC, Lula, Dilma, Temer ou Bolsonaro. De longe é o ser mais adaptado ao nosso ambiente político, pois tem tido o cuidado de moldar as leis — eleitorais e criminais especialmente — para atender suas necessidades.

Dessa forma, ilude-se quem pensa que o projeto do Partido dos Trabalhadores de permanecer 30 anos no poder com base na corrupção fosse o mais nefasto. Na verdade, essa doença chamada corrupção corroeu os intestinos do PT tão logo chegou ao poder — dizem que ainda nos tempos das prefeituras do ABC — justamente pelo fato de o partido ter se deslumbrado com a vitória eleitoral e ter tentado montar um governo sob os mesmos princípios que antes combatia. Millôr Fernandes dizia que “o combate à corrupção é o supremo objetivo de quem ainda não chegou ao poder”. Trata-se de uma ironia completamente verdadeira e atual.

Dessa forma, é claro que o Brasil perdeu com a deprimente história das eleições do Parlamento brasileiro. Ficamos meses sem que discussões realmente importantes pudessem ser feitas, tudo apenas por conta da disputa de poder interno. Bilhões de reais que o governo dizia não dispor para comprar vacinas foram distribuídas entre parlamentares. Já estamos em fevereiro e não temos orçamento, famílias estão desamparadas em pleno recrudescimento da pandemia e a vacinação não deslancha a contento por falta de vacinas. Enfim, caminhamos para o caos enquanto Bolsonaro, Lira a Pacheco confraternizam-se. Entretanto, a alegria de Bolsonaro não irá durar muito, pois o preço a pagar por ter engolido essa doença chamada Centrão é o impaludismo definitivo de seu governo. Se já não havia qualquer vigor moral ou orientação de nossa economia, agora este governo vai se transformar em um Jeca Tatu de cócoras sangrando até morrer.

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