Carlos Fernandodos santos lima

Os abusos dos supremos

16.10.20

A fuga do criminoso condenado André do Rap após a liminar monocrática do ministro Marco Aurélio Mello é a revelação do interior fétido do sepulcro em que se tornou a justiça brasileira, especialmente a nossa justiça criminal. Não há mais cal que encubra o horror do apodrecimento moral e das relações espúrias de poder espelhado pelas decisões dos nossos tribunais superiores. Se há interesses poderosos em questão – e poderosos significam advogados muito bem pagos e relacionados –, decisões monocráticas são tomadas sem qualquer pejo, mesmo que em contradição com outras decisões do mesmo ministro. Se um dia houve um véu da vergonha perante a opinião pública, há dois anos, com a assunção de Dias Toffoli à presidência do STF, ele desapareceu por completo.

Não está a se falar de entendimentos técnico-jurídicos dos “excelentíssimos” ministros, como repetem jornalistas conformados e a opinião pública desinformada. O arsenal de argumentos que usam para encobrir suas decisões não esconde o mau-cheiro de seus reais motivos. O garantismo que lhes dá suporte é apenas um amontoado de repetições sem contexto de doutrinas estrangeiras. É preciso discutir com seriedade tudo o que está acontecendo. É preciso expor a ferida que se abriu em nosso sistema jurídico, antes que a gangrena tome conta e a população desacredite de uma vez na justiça.

Antes de mais nada, o poder Judiciário só tem duas finalidades. Ele existe para solucionar conflitos e assim pacificar a sociedade. As disputas entre particulares ou entre particulares e o próprio estado precisam de uma palavra final que “dê a cada um o que é seu”. Enfim, um Judiciário que não entrega os efeitos práticos de suas decisões é um não poder. As pessoas, e minha história como promotor de Justiça no interior do Paraná bem ensinou, querem ser ouvidas e desejam uma decisão. Querem o “seu dia na corte”, como dizem os americanos, e não a eternização de conflitos, com o desgaste que isso significa.

Estes dias vi na internet uma piada muito verdadeira. O cliente perguntava para o seu advogado quando haveria a decisão no seu processo, ao que este respondia que agora tinham acabado de decidir o caso da Princesa Isabel e que o do cliente estava na fila. Isso é o nosso Judiciário nas questões cíveis. Não julga, e quando julga, não executa. O exemplo mais marcante é a fila de precatórios de estados e municípios. Pessoas morrem sem ver pago o que lhes é devido. Isso não é justiça, mas suprema injustiça. Até mesmo a nobre profissão da advocacia se beneficiaria disso, pois se houvesse a crença na justiça e a rapidez da solução, mais pessoas procurariam os serviços jurídicos e menos criticariam injustamente o advogado pela demora no processo.

Não se tem, portanto, um conceito claro de justiçar, acreditando-se que a eternização dos procedimentos na busca do Santo Graal da verdade é a solução para o problema. Nada mais falso. Se é necessário que haja a maturação das discussões doutrinárias e jurisprudenciais em questões sobre a interpretação de uma lei nova, em matéria de produção de prova – e essa é a essência do processo – a proximidade da decisão com os fatos é o mais importante. Mas o que vemos é exatamente o inverso. Julga-se frivolamente questões jurídicas complexas sobre leis recém-editadas e passam-se anos para que provas sejam efetivamente produzidas nos processos.

Assim, juízes de tribunais superiores agem sem qualquer cuidado, distribuindo decisões liminares em reclamações, em habeas corpus saltitantes, como no caso do líder do PCC solto por Marco Aurélio Mello, pulando instâncias, interpretando leis por conveniência ao seu bel-prazer – ou pela relação com o advogado contratado, sem preocupação com os precedentes do próprio tribunal, pouco se importando com o efeito de suas decisões sobre a população, amparados em um discurso completamente dissociado da prática judiciária, quando não em burla da própria distribuição interna do tribunal.

A questão da execução da pena após decisão de segunda instância é emblemática da torre de marfim em que se refugiam alguns ministros. O melhor exemplo é o do agora aposentado ministro Celso de Mello, que, se de um lado bradava em seus votos sua indignação contra corruptos, contra os abusos que ameaçavam nossa democracia, de outro negava a possibilidade de prisão em segunda instância, exigindo o trânsito em julgado após se esgotarem os recursos em quatro instâncias diferentes, jabuticaba brasileira quase impossível de acontecer, especialmente para os mais poderosos. Enfim, dava com uma mão e tirava com a outra, resultando tudo em processos extintos por prescrição, ou seja, na negação da própria essência da justiça.

Entretanto, o grande dano à imagem do STF não tem sido causado por ministros que perderam contato com a realidade, mas sim do grupo composto por Marco Aurélio Mello, Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski, que se vinculam ideologicamente com o sistema político corrupto e disfuncional que se acha acima das leis. Suas decisões, portanto, são sempre no sentido de proteger esse sistema, mesmo que para isso seja preciso rasgar a Constituição Federal que juraram defender.

É preciso reagir. Torna-se necessário o retorno à excepcionalidade do julgamento do Supremo, da natureza colegiada de suas decisões, da maturação das discussões sobre constitucionalidade de leis, do respeito às instâncias inferiores, especialmente no que se refere à análise fática. Hoje os habeas corpus são julgados liminarmente, como no caso da malfadada liberação de André do Rap, apenas com a versão e documentos apresentados pela defesa, informando-se o Ministério Público da existência do HC muitas vezes após a liberação do preso.

É preciso reconstruir a Justiça brasileira, retirando dela a influência do poder econômico e político. É preciso que notório saber jurídico signifique alguma coisa e não seja apenas qualquer coisa que seja da conveniência do presidente e dos parlamentares. É preciso que haja um escrutínio da sociedade dos nomes apresentados para tão relevante função. É preciso estabelecer quarentena para ministros, parlamentares e o procurador-geral da República, no caso de serem indicados para tribunais superiores, evitando assim que alguns gananciosos tornem-se lacaios do poder. É preciso restabelecer a regra de que tais funções são entregues a pessoas honestas – mais honestas ainda que a mulher de César – , juristas comprovados, pessoas de bom senso e preocupados com os efeitos de suas decisões na população.

Tudo isso é muito ambicioso e utópico, especialmente quando todo esse sistema a ser mudado beneficia justamente aqueles que o podem mudar. Toda questão da impunidade de poderosos e de ineficiência da Justiça é resultado de um mal maior que se aloja no Congresso Nacional. Estamos em um círculo vicioso que só pode ser quebrado pela mobilização permanente da sociedade civil. É uma guerra de trincheiras, com avanços e recuos milimétricos.

Se nestes últimos dois anos houve baixas em decorrência do pacto Toffoli-Maia-Bolsonaro, agora com a chegada de Fux à presidência do STF pode-se ter a esperança de algumas mudanças. A primeira delas foi a volta ao plenário do julgamento das ações penais. A segunda foi colocar o dedo na ferida das decisões monocráticas como a de André do Rap. Agora, o caminho é pressionar o Congresso para que restabeleça a prisão em segunda instância. Se “a vida é luta renhida, viver é lutar”, vamos então à luta.

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