Carlos Fernandodos santos lima

Sou amigo do Gandola

24.07.20

“Quem me mandou aqui foi o Gandola!” Esse foi um dos bordões humorísticos mais repetidos no Brasil nos anos finais da ditadura militar. O personagem de Jô Soares, ao se candidatar a um emprego, lembrava sempre ao dono do negócio que o tal Gandola era seu padrinho. Mas não bastava ser aceito por conta da influência deste, o personagem sempre queria cargos e benefícios melhores, repetindo “veja bem, quem me mandou aqui foi o Gandola!”.

O pitoresco desse personagem foi que, somente após um ano e meio de programa, a censura percebeu que Gandola se referia a uma espécie de túnica que faz parte do uniforme militar e determinou a troca do nome de tal padrinho, pois o Gandola, por óbvio, era a referência aos militares no poder e à pequena corrupção do apadrinhamento, tão comum no Brasil.

Interessante que esses dois fenômenos repetem-se hoje na farsesca república que vivemos. Os Gandolas continuam por aí, como sempre, e quando descobertos, muitas vezes, recorrem ainda à censura como forma de calar a crítica legítima. Esses “amigos do rei” transitam de bermudas por palácios de Justiça, alcançam medidas judiciais inéditas para seus ricos clientes, ofendem agentes públicos por terem tido a ousadia de tentar fazer valer a lei para todos, enfim, dormem com nossa prostituída República na cama, local e maneira que escolhem.

Mas a república é um conceito tão caro para nossa Constituição como a própria democracia. Coisa pública significa em seu sentido último a igualdade de todos perante a lei. Entretanto, poucas coisas são tão vilipendiadas quanto essa igualdade. Falamos em cidadãos comuns, como se a palavra “cidadão” pudesse ter restrição em si mesma. Somos todos simples e unicamente cidadãos, ou então, se há pessoas privilegiadas, ninguém o é realmente!

Nesse sentido, um dos efeitos colaterais da operação Lava Jato foi a exposição dessa realidade, que se escondia sob uma camada de verniz, quase nos fazendo acreditar que o país tivesse atingido uma maturidade institucional em que o “sabe com quem está falando?” não tivesse mais lugar. Infelizmente, logo após a eleição de Bolsonaro e a não reeleição de parcela significativa do Congresso Nacional, houve a percepção desses privilegiados de que, se não reagissem, haveria uma mudança significativa dessa estrutura de privilégios e relacionamentos escusos.

Esse foi realmente o pacto tão noticiado nos primeiros meses de 2019. Um pacto pela reação contra as tentativas de mudar o status quo que tiveram início com as gigantescas manifestações de rua de 2013. Um pacto da elite do poder, especialmente Dias Toffoli, Davi Alcolumbre, Rodrigo Maia e Jair Bolsonaro — este último constrangido e pressionado pelas revelações do rachid nos gabinetes de seu filho Flávio e de nepotismo em seu gabinete parlamentar —, para que esse sistema odioso de privilégios se perpetuasse.

Como em O Leopardo, de Lampedusa, a única mudança permitida seria aquela que mantivesse tudo como estava antes. E assim, essas cabeças dos três poderes soltaram seus sabujos, uma renca de homens pequenos, ávidos de ascender ao poder, bajuladores e sem limites ou pudor, para destruir qualquer tentativa de mudança.

Esse movimento explica totalmente os dois últimos anos, desde o famigerado inquérito de Alexandre de Moraes, com sua tentativa inicial de censurar a revista Crusoé, os repetidos procedimentos disciplinares contra Deltan Dallagnol, o desvirtuamento do pacote anticrime em mudanças que dificultam ainda mais investigações, prisões e colaborações premiadas, a edição de uma lei de abuso de autoridade que visa a punir e constranger policiais, procuradores e juízes, a intervenção de Augusto Aras na independência das forças-tarefas do Ministério Público Federal e até as seguidas decisões judiciais restringindo e paralisando investigações.

Comecemos com Rodrigo Maia. Em entrevista recente, o nosso pouco humilde presidente da Câmara dos Deputados defendeu Augusto Aras e insistiu na fiscalização e “correção” dos comportamentos que ele entende abusivos de procuradores da República. Infelizmente, ninguém lhe perguntou, já que gosta tanto de criticar a ausência de punição adequada aos membros do Ministério Público, sobre a absoluta falta de processos disciplinares da Câmara dos Deputados contra os inúmeros parlamentares, alguns condenados por crimes graves.

Temos também Alcolumbre, que se move para alterar a Constituição Federal e permitir a sua reeleição — e Maia vai de reboque na Câmara dos Deputados — para um segundo termo consecutivo na presidência do Senado. Sua defesa das prerrogativas dos senadores — na verdade infundados privilégios — vai ao ponto de solicitar ao Judiciário que mantenha em sigilo as notas fiscais que justificam despesas da cota parlamentar, impedindo assim a transparência e a fiscalização da imprensa e do povo. Despesas estas, diga-se ainda, que convenientemente explodiram durante a sua gestão.

O governo Bolsonaro não fica atrás. Não fosse o absoluto descomprometimento do presidente com o combate à corrupção, bandeira maior que o elegeu, em um verdadeiro estelionato eleitoral, Bolsonaro ainda ignorou solenemente a lista tríplice de candidatos ao cargo de procurador-geral da República oferecida pelos membros do MPF, uma garantia implícita de independência do PGR, e escolheu um advogado que fazia as vezes de membro do Ministério Público, e que tem desenvolvido um vigoroso trabalho de destruição das forças-tarefas de investigação, bem como minando a garantia de independência funcional dos procuradores.

Por fim, mas na verdade a epítome de todos esses fenômenos, está a presidência de Toffoli no Supremo Tribunal Federal, sem sombra de dúvida a pior presidência em toda a história do STF. Não somente pela fraca argumentação jurídica de seus votos, alguns tão contraditórios que precisam ser traduzidos do javanês, mas especialmente pela intransigente e indecente defesa da política “tal qual ela é”, ou seja, do imoral e obsceno festim de privilégios e desrespeito às leis e à Constituição que ela é hoje.

Assim, sob esse ponto de vista, podemos entender a suspensão durante meses do compartilhamento de informações do Coaf com o Ministério Público a pedido da defesa de Flávio Bolsonaro; a decisão de autorizar, em detrimento da segurança das informações, o compartilhamento de todos os arquivos de todas as investigações do país para a PGR; a decisão de suspender a busca e apreensão no gabinete do senador José Serra; e o arquivamento liminar de pedido de investigação das relações do presidente do STJ e seus filhos em processos naquela corte. Em tudo, mesmo de partidos e interesses diferentes, há o mesmo desejo de que tudo fique como está.

Esse é o Brasil que teima em não morrer. Um país em que o mecanismo de privilégios tem quinhentos anos, onde as peças mudam mas as justificativas dos privilégios continuam existindo. Um Brasil em que, para humilhar um servidor público, um desembargador passa a lhe dirigir a palavra em francês, ou que um dirigente da Petrobras, ao ser preso, diz indignado: “Que país é esse?”. Uma camarilha de privilegiados que perpetuam um país injusto e desigual. Esse Brasil de foro e pessoas privilegiadas, de Gandolas e amigos dos Gandolas deve morrer. E somos nós, cidadãos, que devemos matá-lo.

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