Adriano Machado/Crusoé"Se você examinar a história recente do Brasil, dos anos 1980 para cá, fizemos muitas reformas. Perdemos oportunidades, mas aproveitamos outras tantas. A gestão fiscal melhorou a olhos vistos"

‘Ou fazemos reformas ou teremos uma crise profunda’

Um dos maiores especialistas em finanças públicas do país, Marcos Mendes fala sobre as dificuldades de fazer reformas, mas assegura que o momento nunca foi tão propício para que elas sejam feitas
31.05.19

O economista Marcos José Mendes, de 54 anos, é um dos maiores especialistas em finanças públicas do país. Ao contrário de muitos de seus colegas de profissão adestrados no setor privado e com atuação no eixo Rio-São Paulo, ele fez carreira dentro do estado e na capital federal. Formado pela Universidade de Brasília, foi servidor do Tesouro Nacional e, desde 1995, é consultor do Senado. No governo Michel Temer, foi chefe da assessoria especial do então ministro da Fazenda, Henrique Meirelles.

Mendes, já há algum tempo, é uma das principais vozes dentro do funcionalismo público em favor das reformas da economia brasileira. Ele lança em agosto um livro intitulado Por que é difícil fazer reformas no Brasil?, no qual analisa a experiência de reformas mundo afora. Sua conclusão é a de que o Brasil, apesar dos muitos obstáculos que enfrenta para promover mudanças estruturais na economia, passa pelo momento mais propício para que elas sejam feitas. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Por que é tão difícil fazer reformas no Brasil?
Fiz um estudo da experiência internacional de reformas e a primeira constatação foi a de que é difícil fazer reforma em qualquer lugar do mundo. Estou falando de reformas que abrem mercado, que fazem privatizações, ajustam as contas públicas e reduzem subsídios pagos pelo governo. É difícil fazê-las porque quebram privilégios estabelecidos para pequenos grupos e geram benefícios difusos. Aí os prejudicados, facilmente identificados, se organizam para resistir, ao passo que, como os benefícios são difusos, a população não percebe de imediato seus pontos positivos e não defende as reformas. Além disso, o sacrifício vem antes do benefício. Algumas reformas demoraram 15, 20 anos para mudar a vida da população. O ciclo eleitoral também é curto, o que faz com que o político as evite, pois ele corre o risco de perder a eleição antes de os efeitos positivos das reformas aparecerem.

O político evita reformar para não comprometer a eleição seguinte.
Isso. E ainda corre o risco de, no meio da reforma, vir uma crise e piorar a situação. Vários países do Leste Europeu estavam em ritmo intenso de reformas para aderir à União Europeia. Veio a crise de 2008 e surgiu nesses países um discurso de que a crise ocorreu em virtude das reformas — uma inverdade. Tem isso também: a má interpretação do que de fato está causando a crise.

Mas, mesmo com esses obstáculos, muitos países conseguiram promover reformas.
Sim. Países de alta renda, como Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia. Países da periferia ocidental da Europa, como Portugal, Espanha e Irlanda. Países asiáticos. Ex-países socialistas. Países da América do Sul, como o Chile. Na África, temos o caso da Etiópia. Muitos conseguiram.

Por que conseguiram?
Em sua maioria, são países com área ou população pequenas e que não têm mercado interno suficiente para levar adiante políticas de substituição de importações, de fechamento da economia. O mercado deles, então, tem que ser o mundo. Para isso, é preciso contar com estruturas muito modernas e com forte segurança jurídica, tanto para poder competir como para atrair investidores. A outra constatação é de que há maior chance de fazer reformas em regimes autoritários simplesmente porque isso impede que grupos de pressão se mobilizem. E, com o tempo e a reforma dando certo, existe a tendência de transitar para democracia. Foi o que ocorreu no Chile, na Coreia do Sul e na Indonésia.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/Crusoé“Durante uma década, andamos na direção contrária. Uma série de retrocessos aconteceram. Não podia dar em outra coisa que não a crise econômica”
O Brasil teve um regime autoritário e migrou para a democracia, mas não fez reformas. Por quê?
Por vários motivos. Países como o Brasil, que promoveram abertura política em um contexto sem reformas, com economia estatizada e muita intervenção do governo, abrem espaço para que vários grupos de pressão, como sindicatos, empresários, associações de classe, se organizem e coloquem seus interesses na legislação. Foi o que ocorreu no Brasil com a Constituição de 1988, que tem uma lista de proteções a empresas, uma lista de intervenções estatais na economia, tudo isso gerando ineficiência. Já partimos de uma situação ruim porque cristalizamos na Constituição uma série de contrarreformas. Além disso, nosso modelo político atrapalha. Países que conseguiram fazer reformas têm eleições que geram maiorias para o governo eleito. Aqui no Brasil, é preciso que o governo tenha pelo menos dez partidos para ter maioria a favor. Países reformistas costumam ter, ainda, parlamentos unicamerais, onde as reformas são mais fáceis de tramitar. E não têm governos federativos, nos quais  o consenso é mais difícil. Outro fator muito relevante é a coesão social. Uma sociedade coesa tem baixo nível de conflito entre seus vários grupos sociais, baixa desigualdade de renda e baixo grau de violência. A classe média fica com a maior parcela da renda nacional.

O que isso tem a ver com reformas?
Em sociedades extremamente desiguais e violentas, como a brasileira, em que cada um tenta arrancar a sua parte às custas do outro, tudo vira uma disputa de “nós contra eles”, muito diferente de uma sociedade mais harmônica, em que as pessoas têm mais ou menos as mesmas perspectivas e percepções sobre o que precisam.

Estamos, então, condenados a não ter reformas?
Não. Se você examinar a história recente do Brasil, dos anos 1980 para cá, fizemos muitas reformas. Perdemos oportunidades, mas aproveitamos outras tantas. A gestão fiscal melhorou a olhos vistos. Criou-se a secretaria do Tesouro, aperfeiçoou-se o Banco Central e o os tribunais de contas se profissionalizaram. Já fizemos duas reformas da Previdência, ainda que mitigadas. Fizemos a Lei de Responsabilidade Fiscal, o ajuste fiscal dos estados, criou-se o chamado tripé macroeconômico, com superávit primário, meta de inflação e câmbio flutuante. Não é pouco.

Mas não foram suficientes.
Não, até porque sempre foram feitas em ambiente conflituoso. Talvez essas reformas tivessem tido um impacto positivo muito maior em termos de crescimento da economia, da qualidade de vida, se a gente não tivesse passado de 2005 a 2015 por um período de contrarreforma. Durante uma década, andamos na direção contrária. Houve reestatização, a abertura do mercado de petróleo foi revertida, houve interferência no sistema de preços, os estados e municípios foram estimulados a voltar a se endividar e estão hoje nessa crise tremenda. Vários pontos da Lei de Responsabilidade Fiscal foram corrompidos, houve fechamento da economia e benefícios fiscais a setores específicos da economia foram duplicados em termos de proporção do PIB. Uma série de retrocessos aconteceram. Não podia dar em outra coisa que não a crise econômica que estamos tendo hoje, porque se andou na direção inversa da prática virtuosa e é difícil reverter efeitos criados por tais intervenções equivocadas.

O momento é propício para reformas?
Temos uma grande oportunidade que é a de fazer reforma em meio a uma crise profunda na qual grande parte da sociedade chegou à conclusão de que realmente o modelo tem que mudar porque está dando errado. Aí, todos aqueles que militam contra a reforma ficam enfraquecidos, porque fica evidente que estão indo na contramão do interesse coletivo. Você vê que a aceitação da reforma da Previdência é muito maior hoje do que era há um ou dois anos. Outro fator importante é que há um governo em começo de mandato que chega com a legitimidade do voto de maneira integral.

“Uma questão fundamental é que, em nenhum país do mundo, se consegue fazer reformas com um governo minoritário no Legislativo. Tem de formar maioria no Congresso e, para formar maioria, tem de fazer coalizão”
Mas a aprovação de uma reforma da Previdência significativa ainda é uma incógnita.
É que nada é automático. É preciso operar politicamente de forma correta, fazer um discurso agregador, chamar a sociedade, explicar as dificuldades, comunicar-se adequadamente e ter uma agenda de reformas clara.

É isso o que está faltando?
Sim. Uma questão fundamental é que, em nenhum país do mundo, se consegue fazer reformas com um governo minoritário no Legislativo. Tem de formar maioria no Congresso e, para formar maioria, tem de fazer coalizão. Governo de coalizão não é crime. Se um ministro de um governo de coalizão cometer um crime, esse ministro é demitido e se pede para o partido ao qual ele pertence que indique outro ministro. Ou, se o partido se ofendeu, ele sai da coalizão e o governo tenta atrair outro partido para substituir o que saiu. É preciso deixar claro que não foi só o Poder Executivo que foi eleito. Deputados e senadores também foram eleitos, funcionam pela lógica partidária e os partidos também têm de ser convocados para partilhar o poder.

O presidente Bolsonaro não parece disposto a esse jogo. Há alternativa?
A alternativa é optar por ser governo de minoria, mas sem fazer reforma nenhuma. Vai-se tocando a agenda feijão com arroz, que não é o caso apropriado para o Brasil, porque chegamos a uma situação limite na qual ou fazemos reformas ou vamos, daqui a dois ou três anos, para uma crise fiscal profunda de consequências bastante graves – como calote da dívida pública, perda significativa de poupança da população ou estouro da inflação. Estamos em um momento em que precisamos efetivamente fazer reformas.

Fernando Henrique Cardoso e Lula conseguiram aprovar suas reformas. Por quê?
Fernando Henrique estava fortalecido pelo sucesso do Plano Real, tinha capacidade de articulação e fazia um governo de coalizão com o PFL (atual DEM). Mesmo assim teve uma dificuldade tremenda para aprovar reformas. Lula estava fortalecido pela sua alta popularidade, tinha um governo de coalizão com o PMDB (atual MDB) e o comando sobre as corporações de servidores públicos que são a principal resistência a reformas. Foi fácil para Lula? Também não.

A resistência nos três casos, FHC, Lula e Bolsonaro, é a mesma?
Basicamente, sim. São os sindicatos dos trabalhadores do setor privado formais e os sindicatos de servidores públicos que fazem oposição às mudanças. Nos três casos, o padrão de resistência é o mesmo.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO