FelipeMoura Brasil

Gladiadores x gângsteres

11.09.20

[Este artigo contém spoilers.]

1) “Em meio a toda fofoca e especulação que permeia a vida das pessoas, ainda acho que elas sabem a diferença entre notícia e mentira. E ficam felizes de ver alguém que se importa o bastante para publicar a verdade.”

A declaração é do repórter investigativo Cal McCaffrey, personagem interpretado pelo ator Russel Crowe no filme Intrigas de Estado, respondendo ao apelo hostil de um amigo deputado para que não publicasse sua ligação com um crime de comoção nacional.

McCaffrey se impõe e publica.

A cena retrata a intransigência moral necessária a um jornalista.

2) “Eu agi certo”, diz o detetive Richie Roberts no filme O gângster, baseado em fatos reais. Na cena, Roberts, outro personagem interpretado por Russel Crowe, responde a provocações do mafioso preso Frank Lucas (Denzel Washington). Roberts devolveu uma mala apreendida com 1 milhão de dólares, mas outros policiais, corruptos, depois “pegaram”.

O mafioso Lucas explora o episódio antigo para questionar se Roberts faria isso de novo. Com isso, tenta induzir o detetive a aceitar um suborno para libertá-lo.

“Me dá o endereço, eu mando o carro pra lá e o dinheiro vai estar na mala”, diz.

“Não, obrigado”, recusa Roberts, sentado à mesa de interrogatório, diante do mafioso.

“Você acha mesmo que me colocar atrás das grades vai mudar alguma coisa nas ruas? Os viciados vão tomar pico, vão roubar pela droga, vão morrer pela droga. Se eu estiver lá ou não, não vai mudar nada.”

“É assim que é.”

Sem sucesso, Lucas diz que Roberts tem pouco contra ele, mas o detetive mostra que tem um monte de provas contra o mafioso, incluindo “testemunhas de assassinato a sangue frio”; “imóveis, negócios, contas bancárias no exterior, tudo com dinheiro da heroína”; “e centenas de pais de jovens mortos, viciados que tiveram overdose com seu produto”.

“É a minha história para o júri, é assim que vou convencê-los: ‘Esse homem matou milhares de pessoas, fez isso sorrindo e dirigindo um carrão’. Fora isso, não tem com o que se preocupar”, ironiza Roberts.

Frank Lucas não vê razões para levar o caso ao tribunal e, afetando superioridade, diz também contar com testemunhas: “Celebridades, esportistas famosos, eu tenho o Harlem; eu cuidei do Harlem e o Harlem vai cuidar de mim!”.

Mas o detetive afirma ter mais: “Eu tenho uma fila de gente que dá a volta no quarteirão”.

Sem saída, Frank se faz de vítima de violência policial contra sua família na infância, como quem tenta legitimar sua carreira sanguinária no crime e o desprezo pela polícia, até que sobe o tom, ameaçando Richie Roberts de morte: “Não vai significar nada pra mim se você aparecer amanhã com os miolos estourados”.

“Ora, Frank, entra na fila. Essa também dá a volta no quarteirão.”

“Então tá. Quer saber o quê?”

“Você sabe o que tem que fazer.”

“Quer que eu dedure? Sei que você não quer que eu entregue os policiais. Quer os gângsteres? Pode escolher. Judeus, irlandeses, italianos… Fica com eles.”

“Fico com eles também.”

Frank Lucas ri, impotente e surpreso: “Quer polícia, é? Quer os seus?”.

“Eles não são meus”, rebate Roberts, distinguindo-se dos corruptos. “Se fazem negócio com você, não são como eu. Assim como os italianos não são como você.”

“Tá… O que você pode me prometer?”

“Posso prometer que, se você omitir algum nome, não sai mais da prisão. Se mentir sobre 1 dólar da conta do exterior, nunca mais sai da prisão. Pode viver na riqueza, na cadeia, pelo resto dos seus dias, ou pobre fora dela por um tempo. É o que posso prometer”, impõe-se o detetive Roberts, colocando a questão nos devidos termos.

Frank Lucas então começa a delatar os policiais corruptos e todos os demais bandidos.

A cena retrata a intransigência moral necessária a um agente da lei.

3) No Brasil, apesar da complacência da própria legislação, a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba e o então juiz Sergio Moro conseguiram se impor diante de outros tipos de criminosos poderosos, como no caso de executivos da Odebrecht cuja colaboração premiada atingiu a alta cúpula da política nacional, incluindo petistas, tucanos, caciques do Centrão e, como se vê nesta edição de Crusoé, o ministro do STF Dias Toffoli.

Um desdobramento da Lava Jato no Rio de Janeiro, a operação Furna da Onça, ainda alcançou, entre outros 26 então deputados estaduais, Flávio Bolsonaro, o filho 01 do hoje presidente da República – também ele beneficiário de depósitos do operador Fabrício Queiroz e da mulher dele, Márcia Aguiar, na conta da atual primeira-dama, Michelle. Jair Bolsonaro então nomeou para a PGR um detrator do “lavajatismo” (Augusto Aras) e interferiu na Polícia Federal para não “esperar foder minha família e amigo meu”.

O apelo hostil das autoridades contra a publicação de suas ligações com supostos crimes foi se transformando em diversos atos de censura a veículos de comunicação e procuradores, como nos casos em que o ministro Alexandre de Moraes censurou Crusoé “atendendo a um pedido feito por Dias Toffoli por meio de uma mensagem de texto”; a juíza Cristina Serra Feijó censurou a Globo, proibindo a emissora de divulgar qualquer documento da apuração sobre desvios de dinheiro público no antigo gabinete de Flávio Bolsonaro, a pedido do atual senador; e o CNMP censurou o agora ex-coordenador da Lava Jato em Curitiba, Deltan Dallagnol, a pedido de Renan Calheiros.

“Em muitos momentos, quando o chefe do Executivo procurou o STF, por muitas vezes em decisões monocráticas Vossa Excelência muito bem nos atendeu”, disse ainda Jair Bolsonaro a Toffoli na última sessão do ministro como presidente do Supremo, pouco depois de semelhante troca de afagos de parlamentares com o homenageado.

De fato, durante plantão em recesso judiciário de 2019, Toffoli segurou sozinho a investigação sobre Flávio — e, enquanto a mantinha suspensa, a família Bolsonaro fez campanha contra a CPI da Lava Toga que investigaria o ministro, conseguindo barrá-la.

Agora, com o telhado de vidro de cada um à mostra, graças a forças-tarefa e jornalistas independentes, as razões e manobras de blindagem mútua e coletiva do establishment se tornam ainda mais claras. Toffoli tenta retornar à Segunda Turma do STF, para formar maioria com Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski a favor da impunidade de Lula, Flávio e outros caciques; os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre, e da Câmara, Rodrigo Maia, tentam se reeleger garantindo não pautar impeachment de ministro do STF nem de Bolsonaro; e, apesar dos 400 inquéritos em andamento, Aras já encurtou somente até janeiro de 2021 a prorrogação da Lava Jato, que felizmente cai atirando.

Considerando que grandes filmes são capazes de iluminar o senso moral dos indivíduos, resta a cada brasileiro decidir se é como o jornalista Cal McCaffrey e o detetive Richie Roberts, ou se topa varrer a sujeira para baixo do tapete por conivência, corporativismo e dinheiro.

Como dizia o general Maximus Decimus Meridius, outro personagem interpretado por Russel Crowe, em Gladiador: “O que fazemos em vida ecoa pela eternidade”.

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