MarioSabino

Dois filhos únicos

05.08.22

Tenho dois filhos únicos. Explico: de mães diferentes, eles nunca moraram juntos e uma diferença de 12 anos os separa. O mais velho, como talvez se lembrem alguns leitores, vive na Austrália, para onde se mudou faz quatro anos. Está muito bem, obrigado, depois de dar duro como garçom, enquanto cursava um master na área dele, marketing e vendas. Aos 28 anos, trabalha numa grande multinacional, tem um companheiro valoroso, o Trent, um Mercedes velho e um corgi chamado Alfred. Moram num apartamento de 70 metros quadrados nada mau e agora estão tentando mudar para uma casa. O proprietário da casa acha que a renda conjunta de ambos é baixa para pagar as despesas do imóvel, embora aqui no Brasil eles pudessem ser considerados de classe média alta. A Austrália é cara e Sydney, muito mais.

Há dois dias, enquanto esperava no banco para receber a minha primeira aposentadoria, entabulei uma conversa por WhatsApp com o meu filho mais velho. Ao saber da minha aposentadoria, ele disse: “Parabéns, pai! Dever cumprido. Em 31 anos, espero estar igual”.  Respondi que desejava futuro bem melhor para ele, dada a quantia que recebo depois de quatro décadas me esfalfando. Quando completei 60 anos, ele disse: “Te amo e tenho muito orgulho de você, pai. O meu sonho é ter o mesmo sucesso e integridade que você tem”. Sucesso, propriamente, não tive, ou de tão relativo já não consigo enxergá-lo. Mas acho que me sobrou alguma integridade e fiquei comovido com esse reconhecimento. Na conversa de dois dias atrás, ele me convidou para passar o Natal na Austrália. Talvez eu vá. Meu filho mais velho conseguiu construir uma família, que espero ser duradoura, e seria bom conhecer onde ele cria os seus alicerces.

O meu caçula, de 16 anos, anda às voltas com roteiros, não sei se já contei. No ano passado, depois de escrever uma temporada de uma série de TV , ele começou a roteirizar o meu primeiro romance, O Dia em que Matei Meu Pai, que resolveu ler espontaneamente. Sempre achei que o livro daria um filme, mas jamais lhe disse nada a respeito. Por isso mesmo, achei ainda mais tocante. Depois de ler as primeiras versões, concluí que o meu caçula é muito melhor escritor do que eu. Com 15 anos, eu era incapaz de escrever como ele, ter os insights que ele tem, muito menos em inglês.

No mesmo dia em que recebi a primeira aposentadoria, fui jantar numa pizzaria com o meu caçula (o garoto dorme na minha casa todas as terças-feiras). Conversamos longamente sobre o roteiro. Mas ele notou as minhas ilusões perdidas e me deu uma bronca: “Pai, acredite em você, velho. Deus não está fora de você, fazendo o que ele quer. Ele está dentro de você, fazendo o que você quer”. Concluí que o meu caçula é uma pessoa muito melhor do que jamais fui. Espero que o Deus que está dentro dele o ajude a fazer o que ele quer de bom.

Na volta, no meu escritório, o meu velho amigo Montaigne apareceu para me dizer que, afinal de contas, não sou inteiramente ruim, em que pesem todos os meus erros, todos os meus pecados, todas as acusaçōes que possam me fazer: “Queremos ser amados por nossos filhos? Queremos tirar-lhes a ocasião de desejar a nossa morte? Encaminhemos a sua vida razoavelmente na medida da nossa capacidade”.

Tenho dois filhos únicos.

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