MarioSabino

Sodoma

25.09.20

Num primeiro momento, achei que a fixação de Jair Bolsonaro, os seus filhos e adeptos no que as pessoas fazem ou deixam de fazer sexualmente com o esfíncter anal era devido a certa imaturidade que os fazia retroceder à pré-adolescência, quando a molecada descobre o sexo e, para afirmar-se, faz piadas sobre bunda e se ofende quando é chamada de “veado”. Até dei um descontão em relação à frase de Bolsonaro para a revista Playboy, em 2011: “Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo”. O descontão foi porque, na sua maioria, homens na faixa de idade de Bolsonaro têm muita dificuldade em aceitar filhos gays. Se um dos filhos de Bolsonaro declarasse ser gay, duvido que o presidente o preferisse ver morto.

A fixação, no entanto, começou a ganhar outros contornos quando, no carnaval de 2019, Bolsonaro fez um post no Twitter sobre o “golden shower”. De fato, a cena definida pelos protagonistas como performance artística era chocante. Mas fiquei encafifado: por que o presidente da República havia resolvido tuitar sobre assunto tão grotesco e distante dos negócios de governo?

Comecei, então, a enxergar com outros olhos a fixação de Bolsonaro e companhia no que as pessoas fazem ou deixam de fazer com o esfíncter anal. Havia algo ali que ainda me escapava à compreensão e, de certa forma, continua a escapar, visto que no meu horizonte só existe a questão que me farei lá adiante. Retomei mentalmente a história do “kit gay”, termo pejorativo aplicado ao manual contra a homofobia que o governo de Dilma Rousseff queria distribuir nas escolas. Acho essencial combater os preconceitos em relação a tudo, mas os educadores que elaboraram o manual talvez tenham ido longe demais em assunto que, justamente por estar cercado de ignorância, deveria ter sido discutido antes com os pais dos alunos. Como não o fizeram, foram acusados de “estimular o homossexualismo e a promiscuidade”. Ou seja, acabaram por reforçar a homofobia. No entanto, o ponto aqui é outro: quando falam em “kit gay” ou qualquer aspecto relacionado a homossexualidade, Bolsonaro e sua turma realmente parecem acreditar que ela pode ser ensinada, assim como matemática ou história.

O novo ministro da Educação, o pastor Milton Ribeiro, é menos esfuziante do que o antecessor Abraham Weintraub — e ainda menos interessado nos reais problemas da pasta que comanda. É como se nada fosse com ele, a julgar pela entrevista que deu ao Estadão nesta semana: nem a volta às aulas ou o acesso de estudantes à internet nem a desigualdade educacional no país. Sujeito formidável. Mas Milton Ribeiro tem a única qualidade que agrada a Bolsonaro: a preocupação com o uso do esfíncter anal alheio. Sem ser perguntado inicialmente sobre qualquer tema sexual, ele disse o seguinte ao Estadão:

A biologia diz que não é normal a questão de gênero. A opção que você tem como adulto de ser um homossexual, eu respeito, não concordo. (…) Acho que o adolescente que muitas vezes opta por andar no caminho do homossexualismo (sic) tem um contexto familiar muito próximo, basta fazer uma pesquisa. São famílias desajustadas, algumas. Falta atenção do pai, falta atenção da mãe. Vejo menino de 12, 13 anos optando por ser gay, nunca esteve com uma mulher de fato, com um homem de fato e caminhar por aí.

Tem muita gente que não é evangélico que também não aceita isso. É uma pauta da sociedade mais conservadora. Se eu estabelecesse, por exemplo, uma regra “não vai dar uma aula se o cara é homossexual”… Temos estados aí que têm professores transgêneros, isso não tem nada a ver comigo. Não terei influência.

Ele explicou melhor por que não vê com bons olhos professores transexuais:

Se ele (um professor transexual) não fizer uma propaganda aberta com relação a isso e incentivar meninos e meninas para andarem por esse caminho…. Tenho certas reservas.

Você que me lê pode até ter opiniões semelhantes às do ministro da Educação. Mas ele não pode mentir e distorcer os fatos. Em primeiro lugar, ninguém pode “concordar” ou “discordar” da homossexualidade. Ela está no campo da aceitação. A biologia, por sua vez, não faz classificações morais sobre normalidade ou anormalidade na tal questão de gênero, embora cause estranheza a velhos como eu a possibilidade de trocar de sexo como se troca de carro. Em segundo lugar, se gays fossem produto de “famílias desajustadas”, hipótese sem fundamento na realidade, eles existiriam em menor número. Além disso, seria preciso encontrar um padrão para definir o que é “família desajustada” no caso dos golfinhos com preferências homossexuais, por exemplo — mamíferos que, assim como seres humanos e outros da mesma classe, podem gostar do babado. Por último, a referência a professores gays e transexuais: o ministro não poderia proibi-los de dar aulas porque feriria a Constituição e praticaria crime. A menção à impossibilidade é, portanto, completamente descabida. Quanto a transexuais fazerem “propaganda e incentivar meninos e meninas para andarem por esse caminho”, voltamos ao meu ponto.

É bizarro que bolsonaristas acreditem que alguém pode se tornar gay ou transexual por aprendizado ou imitação. As razões que levam alguém a ser homossexual ainda não estão claras, há uma disputa entre a psicanálise e a biologia, mas uma coisa é certa: não é matéria que se aprenda ou se imite, mesmo em casa. Fosse assim, filhos de homossexuais seriam automaticamente homossexuais, e não é isso que ocorre. Mais: heterossexuais de famílias ajustadíssimas não teriam filhos gays. De onde vem, então, essa crença?

O autor francês Frédéric Martel, no livro Sodoma: Enquête au Coeur du Vatican, já citado nesta coluna, mostra como o celibato dos padres levou a que a Igreja Católica acabasse por ter uma enorme quantidade de gays entre os seus quadros. No curso das suas entrevistas, ele descobriu cardeais com namorados e mesmo companheiros de longa data. Guardas suíços lhe disseram que se sentem obrigados a fechar os olhos para certos frequentadores do Vaticano. Apesar disso, a Igreja Católica, que felizmente deixou de condenar gays à fogueira, permanece sentenciando-os à solidão obsequiosa ao repudiar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Todas as tentativas de ao menos reconhecer qualidades nas uniões civis de gays e separar claramente o joio da pedofilia do trigo da homossexualidade vêm sendo frustradas pelos cardeais mais rígidos. A maior parte deles é gay, constata o autor. “Esses homossexuais enrustidos, mergulhados em contradições e homofobia interiorizada, eles se revoltam por ódio de si próprios ou por medo de serem desmascarados?”, pergunta-se Martel.

Eu também passei a me perguntar, eis a questão.

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