MarioSabino

O vírus mais perigoso que o da Covid-19

17.04.20

A política brasileira é vírus mais perigoso que o da Covid-19.

No último dia 13, escrevi o seguinte em O Antagonista:

Vamos arriscar a hipótese de que, como todo político esperto, Luiz Henrique Mandetta age com cálculo — e o cálculo seria tirar todo o proveito possível da fritura da qual é alvo e continuará sendo, enquanto ele estiver ministro da Saúde, como Jair Bolsonaro faz questão de mostrar dia sim, outro também.

A melhor maneira de fazê-lo seria forçar ainda mais a sua própria demissão, não só falando as coisas certas em coletivas e portarias, como tornando cada vez mais pública a sua contraposição a um presidente perdido no extraordinário mundo da cloroquina como panaceia. Desse modo, mesmo com demissão voluntária, Mandetta não seria visto como o médico que abandona o paciente. A decisão de dar entrevista ao Fantástico, por exemplo: não haveria motivo para falar ao “inimigo” de Jair Bolsonaro, se Mandetta quisesse tanto conservar o cargo, como afirma.

Aproveitar ao máximo a exposição de que usufrui neste momento no qual a curva de casos de Covid-19 ainda não empenou, e sair antes que ela venha a empenar, com a conta das vítimas recaindo sobre as suas costas, eis uma jogada que poderia lhe render ótimos frutos nas próximas eleições. Mandetta já teria tudo a ganhar, inclusive porque poderia liderar as vozes que se opõem a Bolsonaro durante esta crise. Restaria saber se tudo foi combinado com os seus parceiros de DEM.

É só uma hipótese, claro.

Usei a palavra “hipótese” ironicamente. Já havia ficado explícita em horário nobre a intenção de Mandetta de aproveitar-se politicamente da sua fritura, como ficou ainda mais claro na coletiva deste dia 15, quando disse estar “do lado do SUS, da vida e da ciência”; na entrevista que deu à Veja logo depois, ao dizer que “isso cansa!”; e em todas as notinhas que foram plantadas a seu favor na imprensa. Ao longo da semana, Mandetta jogou o óleo quente da sua fritura na frigideira do seu fritador, Jair Bolsonaro, enquanto o presidente procurava um substituto para o pior emprego do Brasil neste momento.

A pandemia proporcionou a Mandetta ganhar notoriedade, enquanto o seu ministério tropeçava nas subnotificações, nas falsas promessas e na carência de estrutura que não pode ser colocada inteiramente na conta de qualquer titular da pasta recente. Compreende-se: ao fim e ao cabo, palavras sensatas são o artigo raro que supre psicologicamente a ausência de máscaras, leitos, respiradores e indumentárias protetoras para médicos e enfermeiros. A saída do sensato, como eu já disse, também evitará que as mortes futuras causadas pela peste recaiam sobre as suas costas. Bolsonaro pode ter arrumado um oponente e tanto em 2022, se Mandetta conseguir manter-se na superfície do noticiário. Ao invés de enfraquecê-lo, Bolsonaro o vitaminou. Ou seja, deu com a frigideira na própria cabeça. Quem sabe o novo ministro, o oncologista Nelson Teich, consiga fazer um curativo.

Para completar o quadro, Mandetta roubou de João Doria o papel de antípoda a Jair Bolsonaro — papel meticulosamente construído pelo governador paulista, com o inestimável auxílio do presidente. Por isso, talvez não seja boa ideia convidá-lo para ocupar um cargo em São Paulo, durante a pandemia. Seria dar-lhe excessiva visibilidade. De qualquer forma, não se deve subestimar a capacidade do Doria de realizar fagocitoses políticas. Ele engoliu quase que totalmente o PSDB (tucanos mineiros ainda resistem), e uma dobradinha com Mandetta como vice não seria desprezível em 2022. Só precisaria combinar com o DEM, aquele partido que o condenado Lula quis extirpar, mas não conseguiu — e que se viu fortalecido no governo Bolsonaro, pelas mãos de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, os dois colossos que comandam o Legislativo. O DEM já parece focadíssimo em trabalhar eleitoralmente o correligionário enxotado do Ministério da Saúde. Para concretizar os seu planos ambiciosos, Mandetta não quer comprar briga pessoal e eterna com os eleitores de Bolsonaro, o que só realça a sua ambição. Bancará o oponente construtivo, ao menos por enquanto. Foi o que reafirmou na sua coletiva de despedida. Eu não me surpreenderia se Mandetta continuasse a usar o colete que passou a compor a sua imagem de ministro, para dar entrevistas fora do cargo. É um político sem fronteiras. Vai virar o Senhor SUS.

Não tenho a pretensão de achar que a minha leitura da situação esteja inteiramente certa ou que alguma previsão nela embutida se confirme. Faço parte daquela turma de escrevinhadores dos primeiros esboços grosseiros da história — os jornalistas. Mas tenho uma certeza: nenhum político nativo tem a prioridade absoluta de salvar vidas, inclusive porque o nosso limite para óbitos é largo o suficiente para abrigar um monte de corpos. Bolsonaro acha que a economia precisa movimentar-se o quanto antes, mesmo que ao preço de milhares de mortes a mais, para não liquidar a chance da sua reeleição; João Doria hesita em decretar o confinamento em São Paulo, cuja metade da população permanece nas ruas, porque teme perder a popularidade recém-conquistada com as suas coletivas asseadas e não quer obstáculos no bom trânsito entre os empresários que são contra medidas mais duras de isolamento social; Mandetta conseguirá fixar-se melhor na memória dos eleitores se o novo ministro for inepto no trato com a pandemia, embora diga que não, muito pelo contrário, estou aqui para colaborar e coisa e tal.

Se os políticos nativos tivessem a prioridade absoluta de salvar vidas, estariam todos articulados desde o início para dar conta da emergência médica, criar um horizonte de saída deste pesadelo de quarentena e planejar a retomada da economia. Se há um mês o tivessem feito, não teríamos perdido o mês que passou e teríamos ganhado o mês que virá. Milhares de cidadãos seriam poupados de perder o seu bem mais precioso, a própria existência, e a economia sofreria menos danos, alinhando-se também com a volta à normalidade que se desenha nos países desenvolvidos dos quais dependemos comercialmente. Mas, repetindo, o vírus da política brasileira é mais perigoso que o da Covid-19. Depois da politização do crime, assiste-se à politização da patogenia.

Desejo boa sorte ao ministro Nelson Teich e espero sinceramente que a doença tenha um comportamento diferente no Brasil do que na Europa e nos Estados Unidos.

Vou esquentar o meu macarrão de três dias atrás.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO