Eduardo Knapp/Folhapress

Uma cultura de histéricos

26.12.19
Luiz Felipe Pondé

Não vou perder tempo definindo o que chamo de cultura neste artigo. À medida que você for lendo, seguramente saberá do que se trata. Já dizia o filósofo francês Blaise Pascal no século XVII, existem coisas que ficam mais claras quando não tentamos defini-las. Pascal tinha em mente conceitos como tempo ou espaço. Para ele, ao tentarmos definir coisas assim, mais confundíamos a comunicação. Trato “cultura” aqui da mesma forma.

Entretanto, posso dar uma definição larga: criações humanas da ordem da techné (técnica e cultura), como diziam os gregos, por oposição a physis (natureza), apesar da fronteira entre ambas poder ser um tanto porosa. Do croissant ao samba, de Bach a Shakespeare, do axé ao conceito de “techné”, do cultivo do trigo à fabricação de armas, tudo é cultura.

Podemos também pensar em cultura, de modo mais específico, como aquilo que ocupa “gente de humanas”, como teatro, literatura, filosofia, jornalismo, política, arte, hábitos, costumes e valores. Esse último entendimento está mais próximo do que os mortais pensam quando falam coisas como “gente da cultura” ou “a cultura brasileira” ou, ainda, “cultura empresarial”.

Ainda podemos pensar em cultura como aquilo que é objeto de atenção do Ministério da Cultura. É nesse último entendimento que me movo nos limites deste breve artigo. Aqui, a expressão assume um sentido meio “chique” (festivais, prêmios, mídia, celebridades), diretamente associado ao mundo da inteligência pública e das produções artísticas. Ou, na sua forma degradada, dos inteligentinhos.

Agora, já o conceito de inteligentinho, este é muito preciso. Descendente direto do semiletrado (termo autoexplicativo) do crítico Otto Maria Carpeaux, e do demi-savant do próprio Pascal. Por essa expressão, Pascal se referia aos “meio-sábios” que se assumiam como sábios porque conheciam apenas um pouquinho de poucas coisas, mas tinham muitas opiniões muito seguras sobre tudo, justamente porque não conheciam nada de forma um pouco mais detida.

Outra referência histórica precisa é o idiotes grego. A presença na assembleia ateniense nos anos de democracia podia ser dividia em três tipos básicos de cidadãos: os que iam sempre, os que iam pouco e os que nunca iam. O idiotes eram os que iam pouco, mas quando iam, falavam muito, e como iam pouco, sabiam pouco, e por isso mesmo, faziam um enorme estrago nas decisões da assembleia. A semelhança entre o termo grego e o idiota do português é direta.

O inteligentinho é nosso idiotes da vida cultural e política. Movido, antes de tudo, por essa praga moderna chamada ideologia política, o inteligentinho pode ser de direita ou de esquerda, apesar de que seu tipo mais comum é o de esquerda. O inteligentinho de direita costuma ser um boçal que abomina a cultura porque a considera “coisa de viado”. Esse tipo de inteligentinho não me interessa muito neste momento (volto a ele no final), apesar de que sua presença no poder federal no Brasil tem deixado o inteligentinho de esquerda (vou usar o termo “inteligentinho” a partir de agora apenas como o de esquerda), este sim bastante ativo na vida cultural, muito excitado.

Assim sendo, suspeito que no próximo ano a atividade cultural no Brasil, maciçamente dominada pelos inteligentinhos, será ainda mais histérica do que nunca. A excitação dos grupos culturais inteligentinhos nunca esteve tão alta como no último ano por aqui (mas, o fenômeno é mundial, temo). Eles e elas (para escrever de modo inteligentinho) deviam acender velas para Bolsonaro por aumentar seu orgasmo cultural e político. Suas vidas irrelevantes se tornaram ainda mais ruidosas graças à vitória de Bolsonaro.

Penso que a cultura no Brasil, quase monopólio dos inteligentinhos, será cada vez mais histérica nos próximos anos. Aliás, ao afirmar que a cultura se tornará histérica, apesar de não tecer comentários freudianos sobre o assunto, quero dizer que ela será obcecada, em grande medida, pela pauta sexual e de gênero, tanto para os inteligentinhos quanto para os boçais da direita (os inteligentinhos de direita).

Você pode me perguntar a razão de eu ter falado de “vida irrelevante” acima. Um dos principais problemas aqui é que a cultura é pobre, apesar da obsessão sexual na “gente da cultura” estar presente mesmo entre os ricos de Hollywood. Freud deve dar gargalhadas no além daqueles que colocaram em dúvida a atualidade da sua teoria da sexualidade: arrastamos parte da nossa vida num movimento cego para lidar com a negação da diferença sexual. Eis a histeria: somos todos fluidos e bacanas.

Mas, por aqui, a cultura vive de editais e de “uma mão lava a outra”. A pobreza material piora o comportamento moral, apesar dos sorrisos e das bravatas de amor. É justamente nesse sentido que a presença de Bolsonaro no poder os une: odiemos o “fascista”, enquanto traímos uns aos outros ao sabor da luta pelo sucesso material e egoico. Uma das desgraças do mundo da cultura é sua natureza vaidosa. Sem dinheiro, a vaidade fica sobrecarregada na sua missão solitária de sustentá-los no mundo.

Há muito tempo que o mundo dessa “cultura” é um mundo obcecado pelas pautas feministas e seus derivados, como a de gênero, ou seja, sexo. Sabemos que essas pautas políticas em cultura tendem a produzir resultados repetitivos, pouco criativos e cansativos, que alimentam unicamente a si mesmas. Atrai para si contingentes de pessoas que sofrem nas suas vidas com essas questões, e com razão, devemos reconhecer, buscam formas de lidar com esse sofrimento.

O mundo, em geral, é uma máquina de tortura à qual devemos sobreviver a cada dia. O fato é que, como no caso da “arte socialista”, a submissão da produção cultural à intenção ideológica, seja ela qual for, tende a empobrecer a dimensão cognitiva, afetiva e intelectiva da produção em si. O resultado é que os eventos sociais e de marketing (ciência esta que devora nosso mundo) ao redor dessa produção se tornam mais importantes, inclusive economicamente, do que a própria cultura. A cultura se torna um espaço de eventos e a “coluna social” se faz biblioteca. Vivemos num mundo de eventos. O caráter circense do mundo, há muito tempo apontado por certas formas de filosofia como o estoicismo, “evoluiu” para a cultura do evento. Tudo é evento e nada existe fora dele. O mundo do evento é um mundo de ruídos e, em meio aos ruídos, fica difícil se perceber a miséria da cultura em si.

Nesse universo, “a identidade de gênero” é mais importante do que o resultado da criação. As associações políticas e seus vínculos de lobby são o coração da prática cotidiana e institucional. E, à medida que esses “atores de gênero” envelhecem, a tendência à histeria aumenta. A impotência é a natureza última da condição histérica. A submissão da natureza criativa aos temas “psicológicos” que dominam as pautas de gênero devasta a possibilidade do enfrentamento da realidade para além dos fantasmas que habitam seus quartos distantes dos eventos histéricos que caracterizam o “mundo da arte e da cultura”.

Mais importante do que Antígona ser uma heroína trágica é ela ser mulher oprimida na Grécia, apesar de que grande parte “das empoderadas” derreteriam diante do desafio vivido por Antígona. O que importa não é Shakespeare, mas sim com quem ele dormia. No fundo, essa cultura é infantil: busca condenar a Chapeuzinho Vermelho porque ela veste vermelho e deseja um lobo mau que a comerá com gosto.

E como ficam os boçais da direita nisso? Simétricos à histeria de gênero, assumem que a cultura é “coisa de viado” e de vagabundo e passam ao ato. Buscam asfixiar os canais de produção de cultura em nome de sua guerra também histérica. Esses boçais estão tão obcecados com quem as pessoas dormem e gozam quanto os “teóricos trans”. Se o cinema brasileiro é um desfile de delírios acerca de bandidos, pobres e “ideologia de gênero”, que vão das favelas às casas de riquinhos com “daddy issues”, a reação da direita boçal é buscar conforto num “terraplanismo cultural” que esconde, possivelmente, o medo de que seu filho mesmo seja alguém com “ideologia de gênero”.

Não vejo nenhuma saída em 2020 desse círculo que se retroalimenta.

Luiz Felipe Pondé é filósofo e escreve semanalmente para o jornal Folha de S.Paulo.

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