ReproduçãoO presidente Gabriel Boric com a proposta de Constituição: ele já fala em mudar o texto

A Carta-bomba

Assustados com o radicalismo da proposta de uma nova Constituição para o Chile, políticos de centro-esquerda, de centro e de direita anunciam que irão rejeitá-la em setembro
08.07.22

O desapontamento ficou evidente na cerimônia de entrega do texto final da proposta de uma nova Constituição chilena ao presidente Gabriel Boric, na segunda, 4. Aquilo que era para ser uma festa já chamava a atenção pela ausência de convidados. Não estavam lá os ex-presidentes chilenos de centro-esquerda Ricardo Lagos e Eduardo Frei. Boric, o mandatário atual, chegou atrasado e fez um discurso morno, prometendo convocar um referendo para que os chilenos possam aprovar ou não o projeto. Na cerimônia, um dos constituintes reclamou de não ter recebido o texto final, crítica frequente entre vários de seus colegas. Nos dias seguintes, Lagos divulgou uma carta aberta em que não apoiava o documento, debatido ao longo de doze meses, e fez vários reparos ao texto. Em seguida, o próprio Boric admitiu que estaria aberto a mudanças no texto recém-concluído ou na Constituição atualmente em vigor. São desvios bruscos de planos, que só têm uma explicação: a nova Carta é uma bomba.

Em apenas dois dias, a narrativa épica criada pela esquerda chilena, repetida pela imprensa mundial, foi desfeita. A história contada era a de que, depois de protestos populares, os chilenos decidiram trocar a Constituição da época da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) por outra democrática, com amplos direitos sociais e respeito ao meio ambiente. Para sua aprovação, entendia-se que seria necessário superar os conservadores da direita e sua ampla capacidade de espalhar a desinformação — e que a superioridade do seu conteúdo acabaria prevalecendo no final. Ledo engano. O que saiu das gráficas oficiais foi um texto que, em vez de sepultar uma ditadura que já não existe há três décadas, traz riscos sérios para a atual democracia chilena e assusta políticos de diversos matizes, não apenas da direita. Entre a esquerda tradicional e democrática do Chile, a nova Carta foi recebida com uma “empolgação de funeral”, segundo um jornal local.

A declaração de Ricardo Lagos é importante porque ele foi do Partido Socialista e do Partido pela Democracia, ambos integrantes da Concertación, a coalizão de centro-esquerda que governou o Chile nos anos 1990 e deu estabilidade ao país. Em sua mensagem, Lagos recomendou seis mudanças no documento apresentado pelos constituintes. Em uma delas, pede para “revisar a fundo o papel do presidente da República e o chamado bicameralismo assimétrico”. Explica-se. Em vários países que optaram pelo presidencialismo, criou-se uma Câmara de Deputados e um Senado para servirem de contraponto ao Poder Executivo. Esse sistema de freios e contrapesos pode até ser dispensável em regimes parlamentares, em que o primeiro-ministro não é o chefe de Estado, mas vem sendo bastante usado onde uma única pessoa exerce essas duas funções, incluindo o Brasil e os Estados Unidos. A sugestão chilena é substituir o Senado por uma frágil Câmara das Regiões, que brotou da cabeça dos constituintes. Daí a tal “assimetria”. Não é uma boa ideia. Na América Latina, o país que acabou com o Senado foi a Venezuela. Deu no que deu. Outra medida tomada pelos venezuelanos e que o texto chileno quer imitar é o fim da proibição de reeleição consecutiva para presidente. É outra medida que causa arrepios na esquerda tradicional chilena.

A centro-esquerda está divida em como avaliar o texto. Apesar de a ideologia dos constituintes ter gerado um texto que eles acham preferível ao atual, foram sacrificados aspectos importantes para eles, como o bicameralismo”, diz o cientista político Jorge Fábrega, professor da Universidade do Desenvolvimento, no Chile. “O Senado tem sido historicamente um espaço de moderação no Chile.”

ReproduçãoReproduçãoConstituintes em cerimônia de entrega da proposta: 51% de rejeição
Outro problema é a troca do termo “Poder Judiciário” por “sistemas judiciais”, o que implicaria um rebaixamento da Justiça e um desequilíbrio entre os poderes. A mudança foi questionada pelo movimento Amarelos pelo Chile (o termo “amarelo” era usado para desqualificar os reformistas nos anos 1970). Criado pelo escritor Cristián Warnken para propor artigos moderados na Constituição que estava sendo redigida, o grupo inclui diversos membros da antiga Concertación. “As palavras com as quais nomeamos as instituições importam”, lê-se em um relatório de treze páginas sobre o conteúdo do esboço. Os juízes também recebem várias orientações obrigatórias no texto, como a de exercer suas funções “em nome dos povos”, o que segundo o Amarelos seria atribuir uma função de representação que não corresponde ao cargo. Juízes devem ser independentes.

São múltiplas as falhas apontadas por Lagos e pelo Amarelos por Chile. Há uma preocupação com a justiça indígena e com a forma como seriam escolhidas suas autoridades. Teme-se que a criação de Autonomias Territoriais Indígenas fraturem o território e a nação chilena. O direito de greve deixaria de ser regulado, o que jogaria o país em paralisações infinitas. O governo também não poderia convocar o estado de emergência para conter distúrbios sociais, um expediente que o atual presidente, Gabriel Boric, utilizou recentemente para conter terroristas mapuches no sul. Até a ideia de criar um “Estado plurinacional”, conceito apreciado pela esquerda latino-americana, é questionado. No Chile, apenas 12% da população se diz indígena e a grande maioria dela vive nas grandes cidades e nas regiões metropolitanas. É bem menos que na Bolívia, 62%, ou no Equador, 46%.

Tudo isso só para ficar nas críticas da esquerda. Nos últimos dias, membros da Democracia Cristã, também da centro-esquerda, pediram à direção do partido “liberdade de ação” para se posicionar no plebiscito de setembro. Eles gostariam de poder fazer campanha para qualquer uma das opções, seja pelo sim ou pelo não. Na reunião da direção, contudo, o partido decidiu por 216 “Como as pesquisas têm apontado um aumento consistente da rejeição à proposta, é provável que mais políticos se declarem contra esse documento”, diz o economista Sebastián Izquierdo, coordenador acadêmico do Centro de Estudos Públicos do Chile. “A lógica da política faz com que eles busquem estar próximos da população.”

A direita repete todas as críticas da esquerda, além de acusar uma defesa débil da propriedade privada. A Constituição atual deixa claro que ninguém pode ser privado de sua propriedade e estabelece que, em caso de expropriação, a vítima pode reclamar nos tribunais uma indenização pelo “dano patrimonial efetivamente causado“. A proposta que irá a plebiscito fala no direito à propriedade, mas diz que o Estado deve garantir a “segurança da custódia” das moradias. O texto gerou insegurança. Além disso, fala-se que as indenizações no caso de expropriações seriam a um “preço justo“, sem definir como isso seria calculado. O documento cita nove vezes o conceito socialista de “igualdade substantiva, em que as pessoas são reconhecidas na medida em que pertencem a grupos, como “mulheres, homens, diversidades e dissidências sexuais e de gênero“. É um conceito diferente do da democracia liberal, que prevê a igualdade de todos perante a lei. Ainda que a diversidade seja um valor a ser almejado, obrigar que todas as instituições estatais tenham um perfil paritário poderia colocá-las à mercê de grupos organizados, controlados pelo poder central.

Apenas 34% dos chilenos hoje dizem estar dispostos a aprovar o texto no plebiscito de setembro, enquanto 51% pretendem reprová-lo. Seis em cada dez afirma que o principal sentimento que a Carta desperta é o de preocupação e temor. Além do desgosto com o texto, há o risco de que o plebiscito de setembro se torne um referendo do presidente. A desaprovação de Boric, que no começo de seu governo, em março, estava em 20%, subiu para 59%. Se essas tendências não forem revertidas nos próximos dois meses, é bem provável que os chilenos prefiram desarmar essa bomba antes que ela destrua a democracia que já dura três décadas.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. O pecado original da atual constituição não nega o fato de que ela foi base para que o Chile se tornasse o país mais desenvolvido da região e não atrapalhou em nada a invejável estabilidade da democracia no país. A verdade é que a justificativa do pecado original foi utilizada por agentes radicais, que representam uma franja da sociedade, colhendo apoio num momento de insatisfação popular. Se ninguém, da esquerda a direita, gosta dessa constituição, que se rejeite e volte ao rascunho.

  2. A América Latina ñ é para amadores, pois, qdo se pensa q está avançando, dá uma marcha à ré de 3 décadas.

  3. Cada um com seus problemas. Também temos uma Construção. Pena que, na maioria dos casos, não é respeitada. Sugiro uma nova Constituição assim: Art 1o. Todos devem tem vergonha na cara. Art. 2o. Todos devem ter vergonha na cara. Art 3o. Revogam às disposições em contrário

  4. Minha opinião é muito simplista (além de irrelevante) sobre assunto: com tantos problemas afetando a população, q se busque resolver ou amenizar esses problemas! Deixa pra reescrever nova Constituição, qdo não tiver mais nada ou tanta coisa pra acertar... Se não é ditadura, não precisa correr...

    1. Alberto (Belém-Pa). Eu estou cada dia mais inclinado a defender ponto de vista semelhante ao da Magda. As mulheres precisam e devem ocupar mais espaços em todos os segmentos da sociedade. No Brasil, por exemplo, há muito tempo que os homens dominam os destinos do país e o que vemos é uma nação que estagnou e pouco avançou em diversos segmentos, em outros até retrocedeu. As mulheres, por exemplo, precisam começar a votar majoritariamente em mulheres. Basta olhar o q elegemos pra PR da República.

    2. correto! realista, gerir bem a nação e não imaginando armadilhas que desaguem no poder de uma minoria!

    3. Sua opinião não é simplista nem irrelevante, Juliana, é uma opinião feminina. Sempre digo, deixem as mulheres governarem, botem os homens no batente, e atingiremos o tão almejado paraíso na Terra :)

    1. Volta Dilma, para nos salvar do desemprego e inflação com a sua nova Matrix Econômica!

    2. infelizmente não basta ser mulher, lembrando da Dilma, tem que ser competente...

Mais notícias
Assine agora
TOPO