Pedro Ladeira/FolhapressDias Toffoli, do STF: perdão para empresas corruptas e investigação sobre a Transparência Internacional Brasil

A maldição de Toffoli

Os investigadores que tentaram apurar as suspeitas sobre o ministro do STF têm em comum uma triste sina que deve se repetir, agora, com o delegado responsável pela delação de Sérgio Cabral
21.05.21

De forma discreta, o Supremo Tribunal Federal julgará a partir desta sexta-feira, 21, um recurso que pode anular toda a delação premiada de Sérgio Cabral. A ofensiva contra o acordo celebrado pelo ex-governador do Rio de Janeiro com a Polícia Federal e homologado no próprio STF foi deflagrada pela Procuradoria-Geral da República há mais de um ano. Na semana passada, o ministro Edson Fachin, relator do caso, decidiu levar a discussão para o plenário virtual, sistema pelo qual os ministros votam por escrito, sem a realização de uma sessão, longe dos olhos da opinião pública. A decisão de submeter a validade do acordo ao crivo dos demais ministros foi tomada dias após a revelação de que, em um dos capítulos de sua delação, Cabral acusou um deles, José Antônio Dias Toffoli. O desfecho do julgamento ainda é uma incógnita, mas nos bastidores do Supremo não há dúvida de que ao menos a parte relativa a Toffoli será solenemente mandada para o arquivo. Algo, aliás, que é bastante comum sempre que surgem suspeitas envolvendo o ministro. A história é sempre a mesma. Com um detalhe inquietante. Além de não virarem apurações formais – nem que seja para, ao final, feitas as averiguações necessárias, concluir que ele é inocente –, os casos quase sempre se viram contra os investigadores que ousam tentar verificar as acusações contra o ministro.

Dos pedidos feitos pela Lava Jato para investigar a relação de Toffoli com as empreiteiras Odebrecht e OAS à apuração da Receita Federal sobre os vultosos pagamentos recebidos pelo escritório de advocacia de Roberta Rangel, mulher do ministro, as suspeitas envolvendo o ex-presidente do Supremo costumam ser acompanhadas de duras reações, seja para sustar as investigações, seja para punir quem as conduziu. Como mostrou Crusoé na semana passada, Sérgio Cabral acusa Toffoli de ter recebido 4 milhões de reais para dar duas decisões favoráveis a prefeitos cassados, quando foi presidente do Tribunal Superior Eleitoral, entre 2014 e 2015. O ministro nega. Diz que nunca recebeu valores ilegalmente. Para além de o caso estar fadado ao arquivo, já se espera um contra-ataque aos policiais que trabalharam na delação. Na própria Polícia Federal, entre as equipes que acompanharam de perto as tratativas com Cabral, é dado como certo que haverá algum tipo de retaliação ao delegado Bernardo Guidali, que assinou o ofício enviado em 30 de abril ao STF, pedindo a abertura de um inquérito na corte para apurar as acusações do ex-governador do Rio de Janeiro.

Os prognósticos têm se confirmado. Na semana passada, sob forte pressão interna, Edson Fachin não apenas negou o pedido feito pelo delegado, como proibiu a PF de investigar os relatos feitos por Cabral até que o tribunal decida se a delação é válida. De perfil discreto e técnico, Guidali é daqueles investigadores que não costumam se intimidar diante de poderosos. Em 2019, ele chegou a pedir a prisão temporária da ex-presidente Dilma Rousseff e de outros nomes de peso da política, no curso de um inquérito sobre pagamentos ilícitos de 40 milhões de reais da JBS nas eleições de 2014. O delegado alegava que, soltos, Dilma e os demais envolvidos na trama poderiam interferir na coleta de provas. O pedido foi negado pelo mesmo Fachin, mas Guidali seguiu trabalhando no Serviço de Inquéritos Especiais da PF, o Sinq, grupo especial cuja missão é investigar autoridades com foro privilegiado nos tribunais superiores. Nem mesmo a permanência dele na equipe está assegurada.

Reprodução/IDPReprodução/IDPO delegado Bernardo Guidali Amaral em uma live: expectativa de punição
Assim que o pedido de inquérito sobre Toffoli veio a público, a chamada ala garantista do Supremo começou a disseminar a versão de que a investida do delegado era uma “retaliação” à nomeação do novo diretor-geral da PF, Paulo Maiurino, que assumiu o comando da corporação em abril após intervenção feita pelo presidente Jair Bolsonaro. Próximo de Toffoli, Maiurino foi secretário de Segurança do STF a convite do ministro. Até em razão dessa relação, ele não foi informado previamente por Guidali sobre o pedido de investigação encaminhado a Edson Fachin no fim de abril. O retrospecto dos casos envolvendo Toffoli mostra que a punição costuma ocorrer exatamente no sentido inverso: quem ousa investigar o ministro não fica impune.

O caso mais emblemático envolve os três procuradores do antigo grupo de trabalho da Lava Jato na PGR que solicitaram ao procurador-geral Augusto Aras a abertura de duas investigações para apurar a relação de Toffoli com as empreiteiras Odebrecht e OAS. Como Crusoé mostrou em setembro do ano passado, o trio decidiu colher um novo depoimento de Marcelo Odebrecht após descobrir que, para além do apelido “amigo do amigo de meu pai”, nos arquivos secretos das duas empreiteiras havia outras menções ao ministro. No depoimento, Marcelo explicou em detalhes o esforço da empresa para que Toffoli atendesse aos interesses da companhia em 2007, quando ele era advogado-geral da União do governo do ex-presidente Lula. Em outra frente, a da OAS, os procuradores disseram ter encontrado em uma planilha “robustos indícios” de que a empreiteira bancou uma reforma na casa do ministro, além de registros de encontros de Toffoli com Léo Pinheiro, antigo dono da construtora.

Os procuradores colocaram tudo no papel e encaminharam o material para Augusto Aras pedir autorização a Edson Fachin para investigar as suspeitas. Como Aras não topou levar a história adiante, o trio pediu para deixar o trabalho na PGR. Logo depois eles passaram a enfrentar apuros dentro da própria instituição. Os indícios que os procuradores reuniram foram simplesmente ignorados e a única apuração que avançou no caso foi contra eles próprios: ainda no ano passado, Hebert Mesquita, Luana Vargas e Victor Riccely viraram alvos de uma sindicância que apura o vazamento de informações sigilosas nos procedimentos relacionados a Dias Toffoli.

Reprodução/MPFReprodução/MPFMarcelo Odebrecht fala a dois dos três procuradores que pediram investigação sobre Toffoli: agora eles respondem a processo disciplinar
Após meses de apuração, a corregedoria do MPF concluiu, no início deste ano, que não havia provas do envolvimento dos três procuradores nos vazamentos. Aras não se deu por satisfeito e fez uma manobra para que a apuração prosseguisse, desta vez no Conselho Nacional do Ministério Público, o CNMP, presidido por ele próprio. Aliado do PGR, o corregedor do conselho, Rinaldo Reis, chancelou a manobra. No CNMP, a investigação volta praticamente à estaca zero e se reabrem os caminhos de punição para os procuradores que queriam ver investigadas as suspeitas sobre Toffoli. Além de ter que responder aos processos administrativos, os procuradores passaram a atuar bem longe de Brasília, cuidando de casos comezinhos. Se antes se debruçavam sobre o petrolão, o maior escândalo de corrupção já descoberto no país, agora eles trabalham em processos ordinários que correm em Arapiraca (Alagoas), Paracatu (Minas Gerais) e São João do Meriti (Rio de Janeiro). A apuração disciplinar não representa apenas uma ameaça permanente de punição. Enquanto estiver em curso, ela também atrapalha qualquer tentativa de reacomodação do trio na carreira. Recentemente, a PGR usou a sindicância como argumento para vetar a ida de Luana Vargas para o grupo de procuradores que substituiu a extinta força-tarefa da Lava Jato do Rio de Janeiro.

A “maldição” de Toffoli também atingiu auditores da Receita Federal que esbarraram no escritório de advocacia da mulher do ministro em uma apuração sobre possíveis fraudes tributárias. Em 2019, veio à tona a notícia de que a banca da advogada Roberta Rangel estava na relação dos 134 alvos de investigação do Fisco relacionados a agentes públicos e que apresentavam movimentações suspeitas, como evolução patrimonial e transações com dinheiro em espécie em valores significativos – a advogada Guiomar Mendes, mulher do ministro Gilmar Mendes, também estava na lista. Em agosto daquele mesmo ano, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu a investigação da Receita e afastou do cargo os auditores Luciano Francisco Castro e Wilson Nelson da Silva, alegando “graves indícios de ilegalidades” e “direcionamento das apurações”. A dupla, que atuava na equipe especial de combate a fraudes tributárias, criada pela Receita justamente para fiscalizar agentes públicos, só foi reintegrada ao órgão três meses depois.

Como mostrou Crusoé no ano passado, três meses depois que a Receita começou a pedir explicações às empresas que contrataram o escritório de advocacia da mulher de Toffoli, o próprio ministro assinou uma liminar paralisando todas as investigações do país que estivessem utilizando dados compartilhados pela Receita Federal e pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf. Além de proferir a decisão, que só seria revertida tempos depois pelo plenário do Supremo, Toffoli aproveitou para angariar informações sobre as apurações que estavam em curso: ele determinou ao Banco Central que lhe enviasse todos os relatórios de inteligência financeira produzidos nos três anos anteriores e, assim, recebeu mais de 19 mil arquivos com dados sigilosos de 600 mil pessoas. No Brasil, a depender das circunstâncias, quem tem a caneta não apenas consegue saber o que há contra si, como pode, sem muito esforço, transformar investigadores em investigados. A mensagem por trás dessas medidas é a de que, antes de investigar um poderoso, é preciso pensar nas consequências.

Atualização — Até a tarde desta segunda-feira, 22, cinco ministros já haviam votado no plenário virtual do Supremo. O placar provisório estava em 3 a 2 pela anulação da delação premiada de Sérgio Cabral, segundo o STF. O relator Edson Fachin acolheu preliminarmente o recurso da PGR defendendo que o acordo feito com a Polícia Federal deveria ter tido anuência do MPF, o que torna sem efeito o ato dele que homologou a delação em fevereiro do ano passado. Gilmar Mendes também votou para derrubar a delação de Cabral e ainda pediu que o delegado responsável pelo caso seja investigado por abuso de autoridade e violação de sigilo profissional. O voto de Gilmar foi acompanhado pelo ministro Kassio Marques. Os ministros Luís Roberto Barroso e Marco Aurélio Mello votaram pela manutenção do acordo celebrado com a PF.

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