Adriano MachadoA fachada do prédio, localizado bem perto da Esplanada dos Ministérios

A sala secreta

A história de um escritório no coração de Brasília comprado pelos auxiliares mais próximos de Jair Bolsonaro e usado pelos filhos do presidente para “reuniões reservadas”
28.08.20

Na região central de Brasília, a pouco mais de três quilômetros da Praça dos Três Poderes, há um prédio de salas comerciais à prova (ou quase) de curiosos. Relativamente nova, a edificação destoa de grande parte dos endereços comerciais da capital por oferecer discrição a seus condôminos. Muitos, aliás, procuram o endereço justamente por essa razão. A região ficou conhecida por abrigar, juntamente com o exclusivo Lago Sul, uma das maiores concentrações de escritórios de lobistas da cidade.

No segundo semestre de 2017, uma das salas do 13º andar do prédio foi posta à venda. Não demorou muito para que aparecessem interessados. O negócio foi fechado em questão de dias. A venda da sala 1301, de quase 38 metros quadrados, foi registrada formalmente em cartório em 30 de outubro. O valor declarado do negócio: 235 mil reais, “pagos neste ato em moeda corrente nacional”, conforme a escritura. Os compradores eram três: Jorge Francisco, Jorge Antônio de Oliveira Francisco e Pedro Cesar Nunes Ferreira Marques de Sousa.

Os três trabalhavam na Câmara dos Deputados. Jorge Francisco, àquela altura, era o chefe de gabinete do então deputado Jair Bolsonaro. Jorge Antônio de Oliveira Francisco, filho dele, era o chefe de gabinete do deputado Eduardo Bolsonaro. Pedro Cesar Nunes de Sousa, amigo de ambos, era assessor de Jair Bolsonaro.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéJorge: ele diz que, agora, quer se desfazer da sala
O trio desempenhava funções extremamente importantes para o clã Bolsonaro em Brasília. O militar da reserva Jorge Francisco, que viria a morrer no ano seguinte, durante a corrida presidencial, era o principal assessor de Jair. Uma espécie de faz-tudo. Como chefe de gabinete, tinha a atribuição, por exemplo, de administrar o entra-e-sai de assessores do deputado que viria a se tornar presidente da República.

Jorge conhecia Bolsonaro havia décadas. Tanto que Jorge Oliveira, seu filho, cresceu com os filhos do presidente, dos quais virou amigo-irmão, e, depois de se tornar oficial da Polícia Militar do Distrito Federal, deixou a farda de lado para seguir os passos do pai e se tornar, também ele, assessor da família no Congresso. Primeiro, no gabinete do próprio Jair. Mais tarde, quando Eduardo se elegeu deputado federal pela primeira vez, no gabinete do 03. Pedro Cesar, colega de quartel de Jorge, foi convidado a se juntar ao time.

A relação do grupo com o clã era tão estreita que, depois da vitória de Bolsonaro em 2018, tanto Jorge Oliveira quanto Pedro César passaram a ocupar posições de destaque no Palácio do Planalto (além de PMs da reserva, os dois são formados em direito). Jorge foi chamado para chefiar a área jurídica da Casa Civil. Depois, com a demissão de Gustavo Bebianno, foi promovido a ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República. Ele é um dos cotados para assumir uma das próximas cadeiras a vagarem no Supremo Tribunal Federal. Já Pedro César ocupa, desde 2 de janeiro de 2019, a prestigiosa posição de chefe de gabinete do presidente.

CrusoéCrusoéA entrada da sala 1301: a presença de filhos do presidente despertou atenção
A aquisição da sala, um ano antes da eleição, transcorreu na mais absoluta discrição. Embora Bolsonaro já estivesse perfilado para disputar o Planalto, o trio de compradores não era conhecido em Brasília. Tempos depois de o negócio ser fechado, porém, funcionários do prédio e ocupantes de outras salas perceberam que havia algo de diferente na 1301: ela passou a ser frequentada pelos filhos do presidente. Crusoé apurou que Eduardo e Flávio Bolsonaro, em especial, já foram vistos por lá algumas vezes – à noite e em finais de semana, inclusive. À boca miúda, a sala passou a ser conhecida por alguns dos vizinhos como o bunker secreto dos filhos de Bolsonaro.

Como a administração do prédio adota cuidados especiais para garantir a privacidade de quem tem salas por lá, nem todo mundo deixa rastro. Visitantes comuns precisam passar pela recepção e deixar nome e número de documento para entrar. Proprietários — e convidados especiais — podem entrar diretamente pela garagem, sem se identificar.

Nas últimas semanas, Crusoé falou com mais de uma dezena de pessoas, entre frequentadores assíduos do edifício e envolvidos no negócio. Também buscou, nos cartórios de Brasília, os registros da transação. Nesta sexta-feira, Pedro Cesar Nunes, o chefe de gabinete do presidente, disse primeiramente que “não lembra” se os filhos de Jair Bolsonaro já foram à sala. Depois, afirmou que, se eles já frequentaram o local, “foi em situações muito específicas, esporádicas” e que “direito de reunião é livre para qualquer pessoa”.

O chefe de gabinete diz que ele, Jorge Francisco e Jorge Oliveira compraram a sala para si próprios, enquanto trabalhavam nos gabinetes de Jair e Eduardo Bolsonaro, porque tinham planos de abrir juntos um escritório de advocacia. Mas com o resultado da eleição presidencial, afirma, a ideia ficou no papel. Ele se irritou ao ser indagado sobre o assunto. “Qual é o problema? Nós tivemos interesse de adquirir e adquirimos a sala.” Seguiu-se assim a conversa:

– Por que os filhos do presidente usam a sala?

– Não, não utilizam, cara. Não me lembro de terem… Isso é uma questão particular. Você me desculpe.

– Mas o sr. é uma pessoa pública, chefe de gabinete do presidente.

– O que você está perguntando não tem nada a ver com minha função aqui (no Planalto), entendeu?

Em seguida, Pedro Cesar, ou Major Pedro, como é conhecido, ameaçou processar a revista.

– Eu não vou mais responder pergunta sua não, tá, cara? Vou esperar para ver o que vão publicar e, se for o caso, vou entrar com direito de resposta. O senhor tá querendo saber demais.

– Queremos saber por que os filhos do presidente frequentam a sala.

– Cara, eu não lembro. Se os filhos do presidente foram a essa sala, foram situações muito específicas, esporádicas. Direito de reunião é livre para qualquer pessoa.

Pouco depois, o ministro Jorge Oliveira deu a seguinte explicação para a aquisição da sala, que Crusoé reproduz na íntegra:

“A compra dessa sala não tem nada a ver com a minha posição funcional hoje, né? É particular, enfim, dentro da legalidade, declarada, registrada nos cartórios oficialmente. Eu vou explicar o contexto. O Pedro Cesar, que hoje é o chefe de gabinete do presidente, trabalhava no gabinete do deputado Bolsonaro, na época, né? E é amigo meu de alguns anos, é policial militar como eu, egresso da PM como eu. Trabalhou comigo em algumas funções na PM enquanto estávamos a serviço da PM. Meu pai também trabalhava no gabinete do deputado Bolsonaro. Era chefe de gabinete lá, e ele trabalhou diretamente lá com eles e eu como chefe de gabinete do Eduardo Bolsonaro. Em 2017, nós tínhamos uma perspectiva de que 2018 seria um ano de campanha, não tínhamos a certeza de que o presidente seria eleito. Meu pai estava com idade um pouco mais avançada, e entendeu por bem querer montar o escritório. Para advogar, lá tinha um espaço físico para que ele advogasse, e ele quis montar um escritório. Eu, obviamente, me coloquei à disposição dele. Pedro tinha uma boa relação com meu pai, meu pai tratava ele como se fosse um filho, pela relação que tinha tanto pelo ambiente pessoal quanto profissional, ele mostrou interesse também de participar desse projeto, que era um projeto pessoal nosso. Ou seja, tínhamos a visão de que no ano seguinte, teria a campanha, meu pai queria ficar numa situação um pouco mais confortável, queria ter um escritório para ter uma ocupação. Ele estava com 68 para 69 anos. Fizemos várias pesquisas, achamos um ponto comercial interessante, vimos ali quanto custava, dividimos por três as despesas, cada um tinha uma reserva, e resolvemos comprar.”

ReproduçãoO discreto Pedro Cesar: “Direito de reunião é livre para qualquer pessoa”
Inicialmente, o ministro disse não saber se os filhos do presidente Jair Bolsonaro usaram a sala. Depois, afirmou: “Na verdade, o que eu me recordo, é que em uma oportunidade eu fui lá com o Eduardo. Não sei se o Flávio ou o Carluxo foram com o Pedro. Não me recordo, não posso precisar. Eu me lembro de uma oportunidade em que fui com o Eduardo lá. Não me lembro de outras oportunidades. Pode ter acontecido, mas eu não me recordo”.

Jorge Oliveira diz que esteve na sala com Eduardo Bolsonaro para um “papo mais reservado” quando ainda era chefe de gabinete do deputado na Câmara. “Eu era chefe de gabinete dele. A gente tratava de coisas pessoais, (era um) lugar para bater um papo mais reservado. Eu sou padrinho do Eduardo. Eles eram muito apegados ao meu pai também. Acho que na época eu tava no gabinete dele. Foi em 2018, se não me falha a memória. Fomos lá falar de coisas pessoais, sentamos lá, conversamos.”

O ministro afirma ainda que, de 2018 para cá, esteve poucas vezes na sala. “Deixamos o espaço físico lá, vez por outra alguém vai lá para estudar, fazer alguma coisa. Eu mesmo, faz tempo que nem vou. A sala tá lá, disponível para uso futuro, e a gente tem aquilo como um patrimônio. Eu mesmo venho pensando em me desfazer, conversar com o Pedro sobre isso.” Ele prossegue dizendo que, depois da morte do pai, evitar ir à sala. “Até por uma questão pessoal, cara, eu não me sinto bem de frequentar.”

Pedro Ladeira/FolhapressPedro Ladeira/FolhapressFlávio e Eduardo Bolsonaro: encontros fora de hora
Jorge Francisco morreu de infarto no dia 1º de abril de 2018, aos 69 anos. Jair Bolsonaro estava em pré-campanha. Embora o ministro diga que perdeu o interesse pela sala após a morte do pai, documentos de cartório mostram que ele e Pedro Cesar, o chefe de gabinete do presidente, continuaram a investir no imóvel. No mês seguinte, precisamente em 22 de maio, os dois compraram uma vaga de garagem no prédio, pelo valor declarado de 43 mil reais. Em junho, houve uma nova aquisição. Desta vez, de mais duas vagas de garagem no subsolo, ao preço de 76 mil reais. Somadas, a sala e as posições no estacionamento privativo do prédio custaram 354 mil reais.

Após comprarem a sala, os então assessores dos Bolsonaro encomendaram uma reforma. Instalaram divisórias e mobiliaram o ambiente. Hoje, na pequena placa ao lado da porta não há qualquer indicação do que funciona ali. A sala passa a maior parte dos dias fechada.

Para além dos escritórios de lobistas e das bancas de advocacia, o trânsito de políticos e de outras figuras conhecidas do noticiário pelo prédio é, de certa forma, rotineiro. Dois andares abaixo da sala registrada em nome do ministro Jorge Oliveira e do chefe de gabinete de Bolsonaro funciona a sede nacional do PSD, o partido de Gilberto Kassab. No auge do processo de impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, a então presidente irrompeu em um dos elevadores do edifício para um encontro reservado com caciques da sigla – era uma última tentativa de convencer a turma de Kassab a apoiá-la.

A chegada da petista foi precedida de um pedido à administração do condomínio: os funcionários deveriam cuidar para que a visita não vazasse para o distinto público. Àquela altura, o PSD era um dos principais focos do esforço do governo para impedir que a oposição conseguisse contabilizar na Câmara os 342 votos necessários para que o processo de afastamento seguisse para o Senado. No prédio também funciona a filial brasiliense do escritório de Roberto Teixeira, o compadre de Lula que virou alvo de investigação da Lava Jato.

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