Flickr schizoformEstátua de Marco Aurélio, em Roma: "o que está fora da minha mente não significa nada para mim”

Escute o que o estoico Marco Aurélio tem a dizer

O imperador romano entendia que a filosofia poderia ser um alívio para a alma e que de nada vale preocupar-se com aquilo que não se pode controlar
02.12.22

Vivemos em permanente estado de crise; já não há quem não sofra de ansiedade. A dinâmica das redes sociais, a rapidez da transmissão de notícias, a vastidão das informações a que temos acesso deixam-nos em constante estado de alerta. Esse bombardeio diário de acontecimentos calamitosos produz em nós tensão e perturbações sem fim. Neste exato momento, milhares de pessoas se afligem com o resultado das eleições brasileiras, o desfecho da guerra da Ucrânia, a possibilidade de uma nova onda do coronavírus, a crise econômica com que os especialistas nos ameaçam e uma série de outras mazelas cuja lista não caberia num livro inteiro.

Talvez convenha a essas pessoas atinar que “o que está fora da minha mente não significa nada para mim”, bem como “ter sempre em mente que tudo isso aconteceu antes. E acontecerá de novo – a mesma trama do princípio ao fim, com encenação idêntica”, com “as pessoas fazendo exatamente as mesmas coisas: casando-se, criando filhos, ficando doentes, morrendo, guerreando, dando festas, fazendo negócios, lavrando a terra, bajulando, gabando-se, desconfiando, tramando, esperando que os outros morram, reclamando das próprias vidas, apaixonando-se, guardando dinheiro, cobiçando poder e cargos elevados”, de modo que “se você já viu o presente, já viu tudo – como foi desde o princípio, como será para sempre”. E nada disso faz a menor diferença, pois “o que não torna o caráter de um homem pior não pode tornar sua vida pior: não pode lhe prejudicar nem por dentro nem por fora”.

É um testemunho da veracidade delas que essas observações, que poderiam ter sido escritas ontem, sejam de autoria de um homem que viveu há quase dois mil anos. O tempo de Marco Aurélio (121 d.C. a 180 d.C.) também foi conturbado, com a diferença de que, como era imperador de Roma, pesava sobre ele uma pressão bem maior do que aquela que pesa sobre nós. Para lidar com ela, Marco recorria à filosofia, que no seu entender era “um unguento calmante, uma loção suave”, “não um peso, mas um alívio”. Aquilo que trouxe alívio a ele também pode trazê-lo a nós.

Foi como filósofo e não como imperador que Marco Aurélio passou à história. O império ruiu, mas as Meditações, seu único livro, provaram-se um tesouro perene. Há milênios, gerações de leitores recorrem a elas para aprender a viver e morrer bem, suportar a dor e o sofrimento, ter resiliência, lidar com os desastres da vida, ser sincero, forte, nobre, sábio, bom — e feliz.

A principal preocupação das Meditações é, pois, de natureza prática: como agir bem e como viver bem. Para os antigos, responder a questões desse tipo era a principal função da filosofia, que consistia numa espécie de ciência do bem viver, cujo objetivo era transformar a alma do estudioso. Esperava-se que a especulação filosófica fornecesse respostas práticas às principais questões da existência humana. O que é o bem? O que é a justiça? Como fazer o que é certo? Como agir em relação ao próximo? Como lidar com a dor e o sofrimento? Como lidar com a certeza da morte? Como alcançar a felicidade?

Entendida desse modo, a filosofia é, em grande medida, criação do ateniense Sócrates (470 a.C. a 399 a.C). Da atividade dele surgiram várias escolas de pensamento, entre as quais aquela que mais influência exerceu em Marco Aurélio, o estoicismo. Os estoicos acreditam que o mundo é organizado de forma racional e coerente. Seu princípio, fundamento e direção é o logos. Embora seja traduzido por “razão”, logos tem significado mais amplo do que aquilo que em geral entendemos pelo termo correlato. Logos é o pensamento racional (o processo e o produto) que opera tanto nos indivíduos quanto no universo como um todo. É tanto a faculdade da razão quanto o princípio racional que organiza o universo. Logos é sinônimo de “natureza”, “Providência” e “Deus”. É a lei divina universal que encadeia tudo.

Como todas as coisas são determinadas pelo logos ou razão, tudo já está programado de antemão e ocorre numa inexorável cadeia de causa e efeito, o destino. A lei da razão universal, que liga todas as coisas, é uma força essencialmente benévola. Tudo, mesmo o que parece mau, converge para o bem e promove o desígnio final da razão universal, que é bom. Embora essa doutrina implique uma visão determinista, os estoicos consideram que certa parcela de liberdade humana está incluída no plano geral do destino. O homem tem, além disso, a liberdade de acomodar-se voluntariamente ao que já está determinado, aceitando tudo o que acontece. Assim, as pessoas são responsáveis pelas próprias escolhas e ações.

O bem supremo, para os estoicos, é a vida virtuosa. A virtude consiste em “viver como exige a natureza”. Uma vez que a natureza é racional, viver de acordo com ela é viver uma vida racional, na qual a nossa natureza está de acordo com a natureza do todo. A pessoa virtuosa amolda-se totalmente ao destino, conforma-se racionalmente à ordem das coisas, basta a si mesma. Para isso, precisa despojar-se das paixões (apatia) e alcançar a imperturbabilidade (ataraxia). Só interessam a ela seu próprio caráter e suas próprias ações, pois é só sobre eles que tem controle racional. Deixar-se afetar pelos acontecimentos, pelas ações dos outros ou pelas próprias emoções é ter menos controle racional sobre si, portanto deixar de “viver como exige a natureza” e ser menos virtuoso.

O candidato que me parecia o melhor perdeu a eleição? Eu não tenho controle racional sobre isso, portanto o fato me é indiferente. Preocupar-me com aquilo que não controlo é inútil e danoso. Além disso, a vitória deste ou daquele candidato, o desfecho desta ou daquela guerra em nada afeta a minha capacidade de agir bem e de viver conforme exige a natureza, além de não afetar o meu caráter em nada, portanto não pode me fazer mal. Se as notícias da guerra me perturbam, basta não prestar atenção a elas, pois “o que está fora da minha mente não significa nada para mim”.

Para os estoicos, portanto, a pessoa virtuosa é plena senhora de si, não se deixa perturbar por nada, não está à mercê dos acontecimentos, pode ser feliz em meio às maiores dores e aos piores males. A pessoa virtuosa é também aquela que ama os seus semelhantes e coopera com eles. Como são dotados de razão, os seres humanos participam da razão universal, constituindo entre si uma comunidade da razão.

É esse esqueleto filosófico que ganha carne, sangue e vida nas Meditações. Tudo indica que Marco Aurélio não as concebeu como livro para publicação nem imaginou que teriam outro leitor além dele mesmo. A obra é antes uma espécie de diário ou caderno de anotações, no qual Marco realiza aquilo que o estudioso francês Pierre Hadot chamou de “exercícios espirituais”: a prática constante de relembrar, reformular e refinar as mesmas regras para a vida, de modo a sempre reconquistar a ordem perdida no caos do dia a dia e tomar posse mais uma vez da própria existência.

Essa dança da vida interior é a marca mesma das Meditações, o que as torna mais preciosas que qualquer tratado formal de filosofia. Aqui não temos só as respostas lapidadas para publicação, mas todo o processo cognitivo, do drama existencial à solução luminosa. Temos acesso ao caderno de notas em que, em meio às dúvidas e hesitações da vida cotidiana, o imperador se bate com as grandes questões da existência de posse da adaga da filosofia.

Neste momento tão oportuno para a leitura da obra, acaba de ser publicada uma nova edição das Meditações em português, que os leitores encontrarão nas livrarias com o nome do autor no original em latim, Marcus Aurelius. Quem estiver em busca do alívio da filosofia encontrará nas suas páginas as regras para a vida de um homem sábio, nobre, bom e bem-sucedido. Afinal, nenhum vírus, guerra ou eleição podem impedir os interessados de levar uma vida feliz e realizada — pois não podem prejudicar o seu caráter.

 

Eduardo Levy é tradutor, escritor e organizou o livro Meditações de Marcus Aurelius (Faro Editorial)

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  1. Perfeito! Esse artigo veio trazer um pouco de alento para todos que estão ansiosos e desanimados. Valhamo-nos da filosofia para acalmar nossa alma.

  2. Belo texto Eduardo! Estou lendo Meditações e admirado como uma obra histórica pode ser tão atual. Um momento de pensar, em meio a tempestade em que sempre vivemos, nos trás para a linha, para o centro de nossas mentes. Parabéns e obrigado

  3. Estou muito satisfeito por ver a revista se espraiar para além da política pura e dura. O estoicismo tem muito mérito, mas a sua prática exige uma disciplina tamanha e tão contrária à natural emocional humanidade que é dificílimo suceder. Sequer estou seguro que a impassibilidade pétrea ante a vida é algo saudável.

  4. Mais um testículo ( com permissão do livre pensar) que não é nada. Apenas uma divagação acadêmica sobre o nada. Triste fim pra nossa tão sólida e independente revista. Como sou empedernido leitor, estarei por aqui só pelos meses que ainda me restam restam pra cair fora, apenas para pontuar o falecimento de nossa ex-combatente do bom jornalismo

    1. Marcio, tu és uma besta..e quadrada..adios paspalho

  5. Meditações e o estoicismo são vacinas contra os vírus pos modernos. Com moderação chegaremos bem ao fim comum a todos.

  6. Tá bom, vamos lá. Marco Aurélio (ou Marcus Aurelius), estoicismo, filosofia. Vou ficar sabido, vou ser feliz. O problema é que, cada vez que clico um artigo da Crusoé, aparece em cima do texto um popup com um filmete de propaganda e pronto! Cadê o estoicismo que estava aqui? Sumiu!

  7. Os princípios do estoicismo se aplicam mesmo para quem não comunga dessa ideia de que o universo é regido por um ser supremo e que tudo o que ocorre visa um bem, mesmo que não compreendamos. E tampouco o estoicismo torna a pessoa alienada, não ligando para nada sobre o qual não tenha controle. Pelo contrário, o estoicismo exige sabedoria para o indivíduo distinguir entre aquilo que depende de si e o que está fora do seu controle. Para exercitar essa sabedoria é preciso estar antenado.

  8. Eu li as Meditações, de Marco Aurélio, livro maravilhoso, ao qual sempre recorro em tempos de dúvida é aflição. Recomendo vivamente!

  9. Excelente introdução para o seu trabalho. Desperta de imediato a vontade de buscar respostas para nossas aflições. Incrivel a atualidade!

  10. Ótimo artigo. Só discordo quando o autor diz que Marco Aurélio entrou para a História como filósofo e não como imperador. Ele também tornou-se histórico como imperador. Está entre os melhores do Império Romano.

  11. Parabéns, Eduardo Levy. Vou ler sua tradução. Marco Aurélio além de grande guerreiro, deixou muita sabedoria em seu diário Meditações . Obrigada pelo seu texto, reflexão apropriada para tempos difíceis.

  12. Muito bom o artigo. Pessoas que pensam, são equilibradas e não fanáticas e têm resiliência para enfrentar os dissabores da vida, mesmo nesse mundo conturbado, conseguem ser mais felizes. Vou comprar Meditações e dar de presente para os meus filhos neste Natal.

    1. Pensamento típico de "bolsolóide" que se recusa a fazer uma análise crítica racional...

  13. Vou seguir a orientação do articulista. Na leitura encontramos paz e orientação nas nossas crises e lides diárias .

  14. Muito bom!! Marco Aurélio e outros estóicos, como Epicteto, têm muito a nos ensinar até hoje. Muito interessante a Crusoé trazer esse tipo de assunto aqui. Afinal, a vida não é só política ou economia (também é, mas não só).

    1. Simplesmente, SENSACIONAL, vou comprar o livro já traduzido.

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