Breno Esaki/Agência SaúdeQuase 90% das doses produzidas foram para países ricos

O milagre das vacinas

O aval dos Estados Unidos à quebra de patentes pode ajudar o planeta a ser livrar mais rapidamente da maldição do coronavírus
07.05.21

O movimento pela suspensão das patentes de vacinas contra a Covid ganhou um aliado de peso nesta semana. O país que historicamente tem se colocado como o maior defensor da propriedade intelectual, os Estados Unidos, anunciou que apoiará a quebra de patentes desses imunizantes na Organização Mundial do Comércio, a OMC. Para que seja implementada, a medida precisará ser aprovada por consenso, o que implica contornar a resistência oferecida por Brasil, União Europeia, Reino Unido e Japão. Uma vez obtido o alinhamento, a suspensão do pagamento de royalties permitirá que fabricantes do mundo todo comecem a produzir em grande quantidade as vacinas desenvolvidas por outras empresas ou institutos. Políticos e ONGs têm aderido com entusiasmo à proposta, enquanto representantes do setor farmacêutico argumentam que a solução deveria ser outra.

A briga contra as patentes parte de um problema real. Cerca de 87% das vacinas produzidas até agora foram destinadas aos países ricos. Os mais pobres ficaram com apenas 0,2%. Muitos governos não podem arcar com os preços em dólares e dependem do consórcio Covax, formado com o apoio da OMS em abril de 2020. Mas a iniciativa tem sido uma decepção. Sem verba suficiente para ir às compras, o Covax distribuiu 49 milhões de doses até o final de abril, quando a meta era entregar 100 milhões até março. As doações de países têm ficado aquém do desejado. Em vez de enviar doses para o consórcio, para que depois elas sejam distribuídas de forma equitativa segundo um algoritmo, muitos governos preferiram fazer doações diretamente para seus aliados, angariando capital político com o gesto humanitário.

A principal dúvida nesse debate é o alcance da eliminação das patentes. Na prática, uma decisão por consenso na OMC impediria que os governos e as empresas punissem países e fabricantes que copiassem a tecnologia dos outros. Os detentores das patentes talvez pudessem ganhar uma pequena porcentagem do faturamento. Mas não é qualquer um que consegue montar uma fábrica de vacinas a tempo de fazer diferença na pandemia. Há vários motivos para isso. Uma delas é a dificuldade para alcançar o grau de desenvolvimento científico necessário. A tecnologia de RNA mensageiro, presente nas vacinas da Pfizer e da Moderna, por exemplo, só se viabilizou no ano passado. A logística também é um desafio. Para fazer a sua vacina, a Pfizer usa 280 componentes, que são fornecidos por 86 fornecedores em 19 países. Poucos lugares no mundo têm as instalações apropriadas e a capacidade para sediar uma fábrica como essa.

O acesso às patentes é apenas parte do problema. Há várias outras tecnologias que não são patenteadas e que estão envolvidas na produção de uma vacina, como o uso de máquinas complexas e o conhecimento técnico necessário para operá-las. Os líderes políticos podem até obter a isenção do pagamento da propriedade intelectual, mas outros conhecimentos necessários para a produção acabarão exigindo o envolvimento das empresas farmacêuticas”, diz Ruth Okediji, professora de direito na Universidade Harvard e especialista em patentes.

Adam Schultz/Official White HouseAdam Schultz/Official White HouseJoe Biden: mudança radical de posição dos EUA
Construir fábricas com tecnologias mais simples, como a da Coronavac, requer menos esforço. O imunizante produzido pelo Instituto Butantan usa o próprio coronavírus, que é inativado após um processo químico. O da Fiocruz usa um adenovírus obtido do chimpanzé. Mesmo assim, é preciso ter as instalações e o conhecimento necessários para a operação. Em depoimento no Senado, que dias depois aprovou um projeto de quebra de patentes, o diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, insistiu nesse ponto. “O Brasil não tem uma indústria de biotecnologia desenvolvida. Mesmo se ocorresse a quebra de patentes, não haveria como incorporar a produção de muitas dessas vacinas, principalmente as mais complexas“, disse Covas. A presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, seguiu a mesma linha: “Neste momento, é fundamental investir na produção local, com os acordos de transferência de tecnologia.”

A Fiocruz só conseguiu se preparar para a empreitada após costurar um acordo de transferência de tecnologia com a AstraZeneca e a Universidade de Oxford. O Butantan obteve ajuda da chinesa Sinovac. Em todo o mundo, mais de 200 acordos como esses foram firmados, o que ajudou a escalar a produção. Uma das preocupações com a onda contra as patentes é a de que as empresas poderiam ficar receosas de fazer esses acordos, uma vez que poderiam expor a própria tecnologia para concorrentes. Em uma nota divulgada logo após os Estados Unidos anunciarem a reviravolta, a Federação Internacional de Associações Farmacêuticas prometeu manter as linhas de produção funcionando. “Continuaremos a fazer todo o possível para aumentar ainda mais a produção de vacinas contra a Covid-19, já que ninguém pode se achar seguro até que todos estejam seguros”, diz o texto. “A única maneira de garantir a expansão rápida e o acesso equitativo às vacinas para todos os necessitados é o diálogo pragmático e construtivo com o setor privado.”

Os que advogam contra as patentes têm como referência a ação do governo brasileiro que, em 2001, quebrou a patente do nelfinavir, medicamento produzido pela Roche que integrava o coquetel antiaids. No afã de distribuir os remédios gratuitamente para 100 mil brasileiros com HIV, o governo negociou com as empresas estrangeiras para reduzir o pagamento de royalties. Nesse caso, como um acordo não foi obtido, a decisão foi unilateral. O nelfinavir então passou a ser fabricado pela Farmanguinhos, da Fiocruz, pela metade do preço. À época, os Estados Unidos reclamaram da atitude brasileira, mas desistiram de comprar briga. Há, contudo, uma importante diferença a se observar: os medicamentos para a Aids são mais simples do que as vacinas contra a Covid. Foi isso o que permitiu que a Fiocruz produzisse oito dos doze remédios do coquetel antiaids. Com as vacinas, as dificuldades são maiores.

Um ponto levantado pelos defensores mais radicais da ideia é o de que as empresas farmacêuticas estariam obtendo lucros elevados na pandemia, indiferentes às necessidades dos mais pobres. Além disso, elas teriam se beneficiado de investimentos governamentais e, portanto, não seria ético cobrar ainda mais com a venda das vacinas. Nos Estados Unidos, dez senadores, incluindo Bernie Sanders e Elizabeth Warren, dois candidatos fracassados a presidente pelo Partido Democrata, pediram a Joe Biden que “priorizasse o povo e não os lucros das empresas farmacêuticas”. No Brasil, o assunto chegou à Câmara dos Deputados, mas ainda não foi discutido.

O ressentimento cresceu na terça-feira, 4, quando a Pfizer divulgou um faturamento de 3,5 bilhões de dólares com a venda de vacinas, o que corresponde a um quarto do seu total. Trata-se de uma reversão do quadro das últimas décadas, em que as grandes farmacêuticas estavam se afastando da área de vacinas para investir em remédios mais caros e lucrativos, como as terapias contra o câncer. Mas as empresas também têm compromissos sociais e temem uma reação negativa da população. Nas negociações com países pobres, a Pfizer afirma não lucrar com as vendas. AstraZeneca e a Johnson & Johnson simplesmente decidiram abrir mão do lucro nas vendas de todas as suas vacinas.

Divulgação/PfizerDivulgação/PfizerFreezer da Pfizer: doação de 2% da produção anual
Nem todas as empresas receberam ajuda estatal. Quando isso ocorreu, o financiamento se deu principalmente para reduzir os riscos e acelerar a produção, uma vez que a demanda era global. A maior parte do esforço veio das próprias empresas. “Tanto a pesquisa quanto o desenvolvimento das vacinas foram conduzidos por cientistas da indústria farmacêutica. Algumas das tecnologias novas usadas já vinham sendo estudadas há anos pela indústria e foram adaptadas para os imunizantes contra o coronavírus”, diz Elizabeth de Carvalhaes, presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa, a Interfarma, que tem entre seus membros a Pfizer e a AstraZeneca. “Se há uma desconfiança de que as farmacêuticas estão tirando proveito de um momento de pandemia trata-se de uma percepção equivocada, pois nunca na história as vacinas foram produzidas em tempo tão curto e com tanta cooperação entre elas.”

Como alternativa à suspensão das patentes, a Interfarma chama atenção para os entraves ao aumento na produção e distribuição de vacinas. Entre eles, estão a falta de capacidade produtiva dos países e o difícil acesso aos insumos, como o Ingrediente Farmacêutico Ativo, o IFA. Além de resolver esses dois problemas, outra solução que está sendo aventada e que deve ganhar força nos próximos meses é a possibilidade de os países que já vacinaram seus cidadãos doarem os estoques excedentes, uma vez que as vacinas têm prazo de validade. Israel, que já vacinou 60% da população, e Estados Unidos, com 40%, já pensam nessa opção.

Propostas também estão sendo debatidas para obrigar as farmacêuticas a reservar parte da produção para mecanismos multilaterais como o Covax. Em 2011, uma regra semelhante foi aprovada, exigindo repasses para a OMS. Mas o acordo vale apenas para pandemias do vírus influenza. No mês passado, um grupo de vinte países fez um chamado pedindo para que algo assim também fosse feito com relação ao coronavírus. Por enquanto, as empresas têm feito repasses de doses de maneira voluntária. A Pfizer falou em entregar 40 milhões de vacinas para o Covax, o que representa 2% de sua produção anual.

Nos próximos meses, o debate sobre possíveis soluções deve crescer. Índia e África do Sul, os dois países que pediram a suspensão das patentes no final do ano passado, pretendem enviar uma nova proposta para ser debatida na OMC. O plano é apresentar algo que possa agradar aos países ainda refratários. No Brasil, o deputado tucano Aécio Neves, presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa, quer discutir na semana que vem com Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, uma proposta que fomente o investimento na capacidade industrial brasileira e permita a produção nacional sem o pagamento de patentes, mas garantindo algum ressarcimento para os seus detentores. “Entendo que seja preciso pagar royalties aos laboratórios, que investiram em tecnologia, mas acho que o valor não deve ser o que cobram hoje”, diz Aécio. Todos esses movimentos mostram que, embora ainda não se conheça o formato final da medida, o aval dos Estados Unidos à quebra das patententes dará um empurrão para que sejam tomadas iniciativas que visem a distribuir de forma mais rápida e equilibrada as vacinas pelo planeta.

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