Foto: Ricardo Stuckert e Adriano Machado Montagem: Daniel MedeirosFoto: Ricardo Stuckert e Adriano Machado Montagem: Daniel Medeiros

Quem é a cara do Brasil

Bolsonaro ou Lula: qual dos dois candidatos é mais parecido com os brasileiros quanto a aborto, casamento gay, religiosidade, porte de armas e educação sexual
01.07.22

O aborto legal de um feto de sete meses em uma menina de 11 anos, realizado em um hospital universitário de Santa Catarina, causou comoção no país. O presidente Jair Bolsonaro publicou fotos de bebês nas redes sociais, disse que pediria uma investigação sobre possíveis abusos na interrupção da gravidez e que se tratava de tirar a vida de um ser indefeso. “Para vocês e todos os que promoveram essa barbárie, somente uma dessas vidas importa e a outra pode ser descartada numa lata de lixo, mesmo que exista chance de se evitar isso”, escreveu o presidente. Seu principal rival nas eleições de outubro, Lula, passou longe do assunto, mas bolsonaristas foram rápidos em reproduzir um vídeo de uma entrevista dada em abril em que o petista afirmava que “todo mundo deveria ter direito ao aborto, e não vergonha”. 

O caso ilustra bem o impacto que poderá ter a pauta de costumes nos próximos três meses, tempo que resta até o primeiro turno da eleição. De um lado, o presidente Bolsonaro fará todo o possível para que esses assuntos entrem no noticiário e nos debates políticos. Do outro, Lula se esforçará para passar ao largo da discussão, mesmo que para isso seja necessário negligenciar algumas das bandeiras históricas da esquerda. No Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil, assinado pelos partidos da coalizão petista e divulgado no dia 21, o trecho que pedia uma política pública para “assegurar às mulheres o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”, que constava no esboço, foi suprimido do texto final. Um bom resumo da eleição deste ano será Bolsonaro tentando puxar esta eleição ao máximo para a agenda de costumes, enquanto Lula buscará falar só de economia”, diz Murilo Hidalgo, diretor do instituto Paraná Pesquisas.

Em abril, Lula já afirmou que “essa pauta da família, pauta dos valores, é uma coisa muito atrasada”. O petista está tão refratário a esses temas que nem sequer comentou a renúncia do presidente da Caixa, Pedro Guimarães, acusado de assédio sexual. “Eu não sou procurador e não sou policial”, justificou. Isso desagrada a aliados de outros partidos e nomes do próprio PT. Existe hoje em dia na esquerda um debate sobre o espaço que as questões identitárias (o reverso da agenda de costumes defendida pela direita) devem ocupar. Elas são fundamentais para militantes mais jovens, ao passo que lideranças mais antigas defendem que temas tradicionais como classe e distribuição de renda devem prevalecer. A segunda vertente claramente venceu o embate interno na preparação para a disputa eleitoral de 2022.

Nosso foco é defender a melhoria das condições de vida do povo: geração de empregos e renda, aumento do salário mínimo, combate à inflação, mais recursos para saúde, educação, cultura, redução das desigualdades, combate a todo tipo de preconceito (de raça, de gênero,de orientação sexual) fortalecimento da democracia com ampliação da participação popular“, diz o coordenador de comunicação da campanha petista, o deputado federal Rui Falcão. Meses atrás, ele mesmo defendia que houvesse mais espaço para os temas comportamentais no debate eleitoral. “Nosso objetivo é derrotar Bolsonaro e suas políticas antipopulares, antidemocráticas e antinacionais“, completa ele.

Se a pauta identitária da esquerda procura pôr no centro da política características como raça e gênero, por trás da pauta de costumes da direita brasileira encontra-se a ideia (nem sempre bem articulada) de que indivíduo e família devem tomar nas próprias mãos tarefas que costumam ser delegadas ao Estado, como segurança e educação. Está aí o ponto de contato entre, por exemplo, a defesa do porte de armas e a rejeição aos debates sobre  sexualidade nas escolas. Nos dois polos do terreno ideológico, há uma forte carga emocional ligada a essas questões. Por causa delas, candidatos foram obrigados a se retratar ou a mudar seus programas de governo em eleições passadas, deixando de lado a coerência. No episódio mais extremo, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso foi derrotado na eleição para a prefeitura de São Paulo, em 1985, porque titubeou ao responder se acreditava em Deus. 

Para esta eleição, a pauta de costumes chega mais forte do que em campanhas anteriores. “A intensidade este ano é maior porque, pela primeira vez, temos um presidente da República que tem insistido nesses temas ao longo de quase quatro anos, em uma campanha contínua para se aproximar dos brasileiros mais conservadores”, diz o cientista político Bruno Silva, do Laboratório de Política e Governo da Universidade Estadual de São Paulo, Unesp, em Araraquara.

Esse peso eleitoral, contudo, será relativo. Para 44% dos brasileiros, a principal preocupação é com a economia, seguida por saúde/pandemia, com 15%. As questões sociais aparecem juntamente com a corrupção, em terceiro lugar, com 11%. “Mesmo as pessoas mais inclinadas a serem impactadas pela agenda de costumes estão hoje mais preocupadas com a inflação, com o desemprego e com a crise econômica”, diz o cientista político Eduardo Grin, professor de gestão pública na Fundação Getúlio Vargas. 

Para entender a visão que os brasileiros têm da agenda de costumes e como eles podem chacoalhar a eleição, Crusoé investigou cinco itens. Em quatro deles, Lula está mais sintonizado com as emoções e com os pensamentos do brasileiro médio. Bolsonaro só se sai melhor na questão do aborto. 

A pergunta incontornável é por que Lula, mesmo estando mais próximo do que pensam os eleitores, foge desses assuntos. A primeira explicação é que não se espera que essa agenda de costumes traga votos ao petista. “Essas pautas funcionam muito bem nas eleições proporcionais. Candidatos a deputado e a vereador têm boas chances de se eleger quando conversam com uma fatia bem delimitada do eleitorado. Nas eleições majoritárias é diferente, aquilo que chamamos de ‘variáveis de sobrevivência’, como economia e segurança, crescem em importância“, diz Mara Telles, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e presidente da Associação Brasileira de Pesquisas Eleitorais, Abrapel. 

A segunda explicação é que, se não agregam votos, os temas sociais poderiam afugentá-los. “Há grupos evangélicos que não votam em Bolsonaro, como os batistas. A tendência é que Lula conquiste esses votos, se não disser nada que os deixe chocados. Um erro na discussão sobre costumes poderia fazê-lo perder esse apoio”, diz Maurício Moura, sócio do instituto Idea Big Data e professor de políticas públicas e análises eleitorais da Universidade George Washington, nos Estados Unidos. “A pauta de costumes é muito mais uma armadilha para os candidatos do que uma isca de eleitores.”

Lula Marques/Agência PTLula Marques/Agência PTLula com a bandeira LGBTQIA+: cautela para tratar um tema caro à esquerda
 

ABORTO

O brasileiro é majoritariamente contra o aborto, independentemente de sua idade ou religião. Uma enquete do Paraná Pesquisas do ano passado revelou que oito em cada dez disseram ser contra a legalização da prática em qualquer situação. Outra pesquisa, feita pela Quaest e divulgada em maio, apontou que 50% dos brasileiros estariam menos propensos a votar em um candidato a depender de seu posicionamento sobre o aborto. Entre os evangélicos, o índice chega a 62%. 

Consciente do estrago que pode causar em seu adversário, Bolsonaro tem aproveitado toda oportunidade para tocar no tema, enquanto deputados alinhados com o governo sugerem projetos de lei para criar o direito do nascituro e instituir o crime de incitação ao aborto. As iniciativas não prosperaram no Congresso. Em uma entrevista dada em abril, Lula afirmou que todo mundo deveria ter direito ao aborto e que se tratava de uma questão de saúde pública. Depois da polêmica, remendou a frase: “A única coisa que eu deixei de falar, na fala que eu disse, é que eu sou contra o aborto. Eu tenho cinco filhos, oito netos e uma bisneta. Eu sou contra o aborto. O que eu disse é que é preciso transformar essa questão do aborto numa questão de saúde pública”.

Ainda que Lula possa a qualquer momento escorregar novamente nessa questão e que Bolsonaro use o vídeo da declaração do petista a seu favor, a repercussão nas urnas é incerta. Em 2010, Dilma Rousseff já era conhecida por defender a descriminalização do aborto. Candidata escolhida por Lula, ela entrou na campanha repetindo o mesmo discurso de que essa era uma questão de saúde pública. Na reta final, o tema esquentou. Em setembro, dias antes do pleito, ela deu uma guinada ideológica. “Sou pessoalmente contra o aborto. É uma violência contra a mulher e eu sou a favor da vida”, disse a candidata, em entrevista à Rede Aparecida, ligada à Igreja Católica. Dilma venceu o primeiro turno com 46% dos votos e o segundo, com 56%. “Se esse tema tirasse voto do PT, isso já deveria ter acontecido em 2010, mas não vimos isso ocorrer”, diz Eduardo Grin, da FGV. Lula agora está afirmando agora que é contra o aborto, assim como Dilma fez em 2010. “Provavelmente, essas reviravoltas trarão problemas principalmente com os seus apoiadores, como os grupos de feministas, mas essas contradições depois serão resolvidas dentro de casa”, diz Grin. 

QUEM É A CARA DO BRASIL: BOLSONARO

 

RELIGIOSIDADE

Nenhum brasileiro pode ter alguma chance para um cargo executivo se declarar-se ateu. Na mesma direção, pesquisas já apontaram que, para 85% das pessoas, acreditar em Deus torna uma pessoa melhor. 

Em 1985, Fernando Henrique Cardoso era candidato à prefeitura de São Paulo quando se irritou com uma pergunta do apresentador Boris Casoy, que questionou se ele acreditava em Deus. “Essa pergunta o senhor disse que não me faria”, respondeu o candidato, então no PMDB. “É uma pergunta típica de alguém que quer levar uma questão íntima para o público.” Ao final, FHC perdeu para Jânio Quadros. 

Assim, tanto Lula quanto Bolsonaro dizem que acreditam em Deus e se declaram católicos, religião de 50% dos brasileiros. Mas há uma divergência clara de estilo. Bolsonaro tem buscado se aproximar dos evangélicos, cita Deus e trechos da Bíblia em diversos discursos e publicações. Lula, ao contrário, diz ser contra misturar religião com a política. “Cada um segue a fé que quer. Cada um segue a religião que desejar. O governante não tem que se meter nisso, não tem que ficar utilizando padre ou pastor”, afirmou Lula em maio.

Com essa postura, Lula é quem mais se aproxima da maioria dos brasileiros. Pesquisa do Paraná Pesquisas do ano passado apontou que 72,8% defendem que a religião não deve influenciar as políticas adotadas pelo governo. Só 22,1% acham que deveria haver influência religiosa no Estado. “A maior parte dos que defendem essa interferência são os evangélicos. Já os católicos, que são mais numerosos, seguem a religião de uma maneira mais leve”, diz Murilo Hidalgo, diretor da Paraná Pesquisas. Entre católicos, o petista tem 42% e Bolsonaro, 20%. Entre os evangélicos, Bolsonaro tem 36% e Lula, 28%, segundo o Datafolha. 

QUEM É A CARA DO BRASIL: LULA

 

CASAMENTO GAY

Ainda que não tenha sido aprovada uma lei sobre o casamento homoafetivo no Brasil, o Supremo Tribunal Federal declarou sua legalidade em 2011. Perto de 10 mil dessas uniões ocorrem todos os anos no país. É uma realidade. Segundo o instituto Ipsos, 55% dos brasileiros são a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo, 14% são a favor de outra modalidade de reconhecimento legal e 18% são contra.  

Atacar direitos conquistados e aceitos pela maior parte da sociedade não é uma boa estratégia de campanha. Em 2018, a eleição de Jair Bolsonaro levou a uma corrida de casais gays aos cartórios, em parte porque havia o medo de que direitos fossem retirados. Mas essa ameaça não teve qualquer chance de se concretizar. Em vez de combater diretamente o matrimônio homoafetivo, Jair Bolsonaro tem falado mais em defesa da família e defendido o casamento entre um homem e uma mulher. Ele já insinuou que os gays teriam percalços em outra vida. “Ninguém é contra duas pessoas conviverem no seu canto e serem felizes. Cada um fez o que bem entender da sua vida. E quem acredita, né, vai ver depois como se entende quando deixar essa Terra. A gente não entra nessa seara”, afirmou Bolsonaro, em entrevista à Rádio Viva FM de Vitória, em janeiro.

Já Lula tem ganhado amplo apoio na comunidade LGBTQIA+. No passado, deu várias declarações a favor da união homoafetiva. Entre homossexuais e bissexuais, o petista tem 66% das intenções de voto e Bolsonaro, 7%.

QUEM É A CARA DO BRASIL: LULA

ReproduçãoReproduçãoBolsonaro com rifle de brinquedo: apoio a armas é menor do que diz a direita
ARMAMENTISMO

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, divulgado nesta quarta, 29, desde que Jair Bolsonaro chegou ao Planalto o número de licenças para a posse de armas de fogo aumentou 473%. Se em 2018, antes de Bolsonaro assumir, o país tinha 117 mil registros ativos, em junho deste ano já eram 637 mil.

Cidadão armado jamais será escravizado” é um dos bordões do presidente. Na campanha eleitoral, em 2018, ele prometeu facilitar o acesso às armas de fogo. Durante o governo, cumpriu a promessa editando ou revogando decretos e portarias. Não porque faltem projetos de lei sobre o assunto. No começo deste ano, havia mais de 350 aguardando votação no Congresso — mas sem força para avançar. O fato de a “revolução armamentista” de Bolsonaro ser feita com base em normas infralegais é um dos indícios de que essa pauta não conta com o amplo apoio social que o bolsonarismo gosta de alardear.

Indício mais forte vem das pesquisas de opinião. No final de maio, o Datafolha perguntou aos eleitores se eles concordavam com algumas afirmações. Uma delas era a frase de Bolsonaro mencionada acima: 51% discordaram totalmente, contra apenas 17% que concordaram de todo.

No caso da afirmação “A sociedade brasileira seria mais segura se as pessoas andassem armadas para se proteger da violência“, a discordância foi de 58%, contra 16% de concordância. Os resultados foram semelhantes diante da afirmação “É preciso facilitar o acesso de pessoas às armas“: 55% e 15%, respectivamente.

Essa é uma pauta de costumes sobre a qual Lula e o PT não temem falar em público. O partido descreve a política de Bolsonaro como “criminosa e inconstitucional” e a associa aos ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral. Lula, recentemente, publicou um vídeo contra a flexibilização do acesso às armas. Em eventos e entrevistas, ele tem contraposto armas e educação, em declarações como: “Precisamos de livros em vez de armas“.

QUEM É A CARA DO BRASIL: LULA

 

EDUCAÇÃO SEXUAL NAS ESCOLAS

O Cenpec e a Ação Educativa, duas organizações não governamentais, divulgaram nesta semana os resultados de uma pesquisa sobre educação sexual nas escolas encomendada ao Datafolha. Das 2.090 pessoas ouvidas, em 130 municípios, 73% se mostraram favoráveis à inclusão desse tema no ensino. Além disso, 81% acreditam que as escolas devem promover “o direito de as pessoas viverem livremente sua sexualidade“, enquanto 79,5% concordaram plenamente com a ideia de que “a educação sexual nas escolas ajuda crianças e adolescentes a se prevenirem contra o abuso sexual“.

A tendência identificada pela pesquisa se choca com iniciativas legislativas em todo o país. Um estudo da ONG internacional Human Rights Watch, publicado em maio, identificou 217 projetos elaborados entre 2014 e 2022 com o objetivo de banir a educação sexual e até mesmo criminalizar o uso de conceitos como “gênero” e “orientação sexual“.

No bolsonarismo, educação sexual se confunde com “ideologia de gênero“, um tipo de doutrinação que levaria à sexualização precoce das crianças, incentivando ainda a dúvida e o questionamento sobre o próprio gênero e a própria sexualidade. Um discurso de Bolsonaro em março resume bem o raciocínio: “Que seja afastada da sala de aula a ideologia de gênero. Não podemos admitir que não se nasce homem ou mulher e se decida o sexo lá na frente. Isso é inadmissível. Isso não pode ser aceito por qualquer um de nós“, disse ele.

O tema não consta das diretrizes do programa de governo de Lula, divulgadas há dez dias. O PT já se queimou numa polêmica em torno do assunto. Em 2010, um conjunto de livros e materiais didáticos sobre homofobia, que seriam distribuídos pelo Ministério da Educação, foi apelidado de “kit gay” por conservadores — entre eles, o então deputado federal Jair Bolsonaro. Acuado, o governo acabou cancelando a distribuição dos textos. O ministro na época era Fernando Haddad, que veria o assunto ser usado contra ele em 2018, quando disputou a presidência com Bolsonaro.

Até recentemente, existia no PT um debate sobre o espaço que as questões identitárias (entre as quais a de gênero) deveriam ocupar na comunicação do partido. Venceram aqueles que preferem deixá-las em segundo plano. O próprio Lula não mostra plena desenvoltura ao tratar delas. Uma recente biografia do candidato conta que, durante sua prisão em Curitiba, ele perguntou a um dos advogados que o visitavam regularmente: “Me explique uma coisa: o que é essa história de pauta identitária?“. Embora não ignore as discussões de gênero, o petista entra nelas com cuidado. Nesta terça, 28, Dia do Orgulho LGBTQIA+, ele divulgou vídeos e fez postagens nas redes sociais. “Ninguém deve ser desrespeitado ou sofrer violência por aquilo que é, e todos têm o direito à felicidade. Em meus governos, sempre estivemos atentos e atuantes aos direitos da população LGBTQIA+. O Brasil deve ser um país de amor, respeito e inclusão, não de ódio e preconceito“, escreveu ele em seu Twitter. Bolsonaro silenciou sobre o assunto.

QUEM É A CARA DO BRASIL: LULA

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