Flickr/Joshua MayerEstátua de Abraham Lincoln na Universidade de Wisconsin: presidente abolicionista não passou no teste dos ativistas

Vândalos da história

Até onde vai a onda de revisionismo que, embalada pela radicalização do politicamente correto, quer remover estátuas, mudar nomes de instalações públicas e deletar o passado
03.07.20

O presidente americano Abraham Lincoln foi assassinado com um tiro na nuca quando assistia a uma peça de teatro em Washington, em 1865. O magnicida, o ator John Wikes Booth, era um simpatizante dos estados confederados, que lutaram na Guerra Civil americana (1861-1865) contra os estados do norte, comandados por Lincoln. Booth nutria ódio profundo aos abolicionistas do Norte e ao presidente, que decretou o fim da escravidão. No final de junho, um grupo de estudantes da Universidade de Wisconsin, na cidade de Madison, pediu a retirada de uma estátua de Abraham Lincoln do campus. O motivo: um discurso de Lincoln durante sua campanha, no qual ele defendeu que os brancos deveriam ocupar uma posição superior à dos negros.

Para os universitários americanos, o legado de Lincoln, que morreu por sua posição contra a escravidão, não é o bastante para inocentá-lo da acusação de que ele disse frases contra os negros. Assim como o ex-presidente, diversas figuras históricas dos Estados Unidos, do Reino Unido e de outros países têm sido reprovadas no teste de pureza imposto por grupos de ativistas e políticos. Além de solicitar a remoção de esculturas e a retirada de nomes de aeroportos, de ruas ou de escolas, muitos têm apelado para o vandalismo: jogam tinta vermelha, picham e cortam a cabeça das imagens. Em Bristol, na Inglaterra, uma estátua de Edward Colston, traficante de escravos, foi jogada no rio.

O furor iconoclasta, que hoje abarca até figuras como o explorador italiano Cristóvão Colombo, ganhou força na esteira da indignação com a brutalidade policial contra negros americanos. Para muitos jovens que aderiram à causa antirracista, o sistema social é intrinsecamente excludente, pois foi feito para prejudicar os negros. É preciso então estar desperto e alerta o tempo todo — “woke” na gíria em inglês — para detectar qualquer sinal desse desfavorecimento e agir rápido. Não há diálogo possível. Quem contesta a causa deve ser “bloqueado” ou “cancelado”, assim como ocorre nas conversas nas redes sociais. É a cultura “call-out”, sem espaço para o contraditório.

ReproduçãoReproduçãoO ex-presidente Barack Obama: contra a cultura do ‘cancelamento’
Quem discorreu muito bem sobre a natureza do comportamento “woke” ou “call-out” foi o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, Barack Obama, em uma palestra no ano passado. Após conversas com sua filha Malia, estudante na Universidade Harvard, Obama fez ponderações ao ativismo do momento. “Essa ideia de pureza e de que você nunca se compromete e está sempre politicamente desperto precisa ser superada rapidamente. O mundo é uma bagunça. Existem ambiguidades. Pessoas que fazem coisas realmente boas têm falhas. As pessoas contra as quais você está lutando podem amar seus filhos e compartilhar algumas coisas com você”, disse Obama.

A questão é que a patrulha politicamente correta das redes sociais, condenada por Obama, foi transferida para as ruas. Assim como no mundo virtual, o julgamento é sumário e não admite ambiguidades. De início, a ira se voltou contra a memória dos confederados, que até o ano passado tiveram ao menos 780 estátuas removidas nos Estados Unidos. O sucesso do movimento levou os grupos a incluir mais nomes na lista de bloqueio. Presidentes americanos como George Washington e Thomas Jefferson passaram a ser execrados porque tiveram escravos. O democrata Woodrow Wilson, que propôs uma organização multinacional para promover a paz, a Liga das Nações, e conduziu os Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial, terá seu nome retirado da Escola de Políticas Públicas e Internacionais da Universidade Princeton, onde foi professor e reitor. Wilson fez declarações racistas e manifestou apoio a leis segregacionistas e favoráveis à Ku Klux Klan. A ofensiva mira outras personalidades para além dos livros de história. O ator americano John Wayne, por exemplo, pode ter seu nome retirado do aeroporto de Orange County, na Califórnia, porque, em 1971, deu uma entrevista para a Playboy dizendo que acreditava na supremacia branca “até que os negros fossem educados para ter responsabilidade”.

As declarações pelas quais muitas dessas figuras estão sendo criticadas seriam intoleráveis se fossem dadas no mundo de hoje. Contudo, ao julgar seus autores pela ótica atual, desconsideram-se suas contradições e o contexto em que eles viveram. Não que isso sirva, pelas lentes de hoje, como uma justa explicação, mas vários americanos influentes tiveram escravos porque esse era o normal da época, muito embora a escravidão seja execrável. Thomas Jefferson teve seiscentos, os quais cumpriam funções diversas. Eram artesãos, cozinheiros, pintores e agricultores. A condição de dono de escravos não o impediu de condenar o tráfico negreiro e de escrever o esboço da Declaração de Independência americana: “Todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade”. A frase encorajou movimentos abolicionistas e independentistas por todo o planeta, incluindo a América Latina.

Reprodução/Redes SociaisReprodução/Redes SociaisAeroporto John Wayne na Califórnia: nome do ator pode ser retirado
Estátuas deveriam ser um valioso recurso para estimular reflexões importantes para a sociedade. A escravidão, a conquista da América, o imperialismo e as guerras produziram sofrimento em milhões de pessoas. Mas imagens de seus personagens não necessariamente embutem o apoio a uma determinada personalidade ou ideologia. Elas são, antes de tudo, um símbolo para lembrar que esses momentos existiram. Podem servir, assim, como um alerta para que episódios condenáveis do passado não se repitam. “Este é um tema sensível, e é preciso compreender que algumas pessoas se sentem desconfortáveis em ver algumas imagens em locais públicos”, diz o cientista político Jorge Zaverucha, professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco. “O que não se pode é desconsiderar o papel didático que elas têm. Em vez de destruí-las, seria mais proveitoso colocá-las em museus, onde só vai quem quer.”

Mesmo esculturas que antes passavam despercebidas, escondidas entre as copas de árvores ou nas fachadas de edifícios, foram incluídas nas listas elaboradas pelos manifestantes. “A de Cecil Rhodes (símbolo do imperialismo britânico na África), na Universidade Oxford, é um exemplo interessante. É preciso saber que ela está lá para encontrá-la”, diz Daniel Butt, professor de teoria política em Oxford, no Reino Unido. “O problema é que, uma vez que você sabe que está lá, isso pode tornar-se angustiante e ela passa a ocupar um espaço em sua mente.”

Nos últimos anos, as pessoas passaram a se incomodar cada vez mais com nomes de ruas, aeroportos, faculdades e com monumentos. Em 2017, uma pesquisa da Morning Consult apontou que 26% dos americanos eram a favor da retirada de estátuas de confederados. Em junho deste ano, a porcentagem tinha aumentado para 32%. O apoio à derrubada é maior entre os democratas: 53% deles acham que as esculturas devem ser retiradas. Entre os republicanos, apenas 11% defendem a remoção. Na última semana, o prefeito de Nova York, o democrata Bill de Blasio, consentiu com a retirada de uma estátua de Theodore Roosevelt da frente do Museu de História Natural. Na escultura, Roosevelt está montado em um cavalo. Um índio e um negro aparecem ao seu lado. A decisão não foi tomada por algum defeito do ex-presidente, a quem o museu continua tendo em elevada estima. Roosevelt criou reservas naturais e seu pai foi um dos fundadores da instituição. Toda a questão está na “composição hierárquica” da peça. “O Museu de História Natural pediu para remover a estátua de Theodore Roosevelt porque ela retrata explicitamente negros e indígenas como subjugados e racialmente inferiores. A prefeitura apoia o pedido do museu”, disse De Blasio, em comunicado. Espera-se que a estátua realmente passe a integrar o acervo do museu. Seria uma ironia muito grande  se um museu, instituição dedicada a preservar objetos e imagens do passado para melhorar explicá-lo ao futuro, a destruísse.

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