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A guerra que ameaça o mundo

Movido pelo nacionalismo anacrônico e pela vingança, Vladimir Putin rompe com a lei internacional ao invadir a Ucrânia e expõe a fragilidade da Europa
24.02.22

Na mesma madrugada em que ordenou disparos de mísseis, bombardeios de aviões e de helicópteros e incursões de tanques contra diversas cidades da Ucrânia, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, divulgou um vídeo na televisão em que anunciou uma “operação militar” para “desmilitarizar e desnazificar” o país. Também ameaçou que, se nações ocidentais caíssem na tentação de se intrometer nos eventos em andamento ou ameaçassem a Rússia, isso levaria a consequências nunca vistas na história. “Todas as decisões já foram tomadas”, disse o autocrata. “A verdade está do lado da Rússia.”

Não há nada que possa justificar uma invasão a um país pacífico como a Ucrânia, que após sua independência, em 1991, abriu mão de seu arsenal nuclear e tem experimentado uma democracia com alternância de poder. Aterrorizadas, 100 mil pessoas fugiram da capital, Kiev, apenas nesta quinta-feira, segundo a ONU, sem saber por que o país estava sendo invadido. Tampouco o governo, liderado pelo ex-comediante Vladimir Zelensky, fez algo de concreto que pudesse ser usado como pretexto para uma incursão militar da Rússia.

Putin, contudo, adotou uma realidade paralela, fabricada por ele mesmo e espalhada por veículos de propaganda financiados pelo Kremlin ao redor do mundo. Na sua versão da história, os cidadãos ucranianos que vivem nas regiões do leste da Ucrânia estavam sendo vítimas de um genocídio, levado a cabo por milícias nazistas apoiadas pelo governo de Kiev. É uma farsa. Horas depois do anúncio de Putin, o presidente Zelensky, que é judeu, colocou os fatos em seus devidos lugares: “Como pode um povo que deu mais de 8 milhões de vidas pela vitória sobre o nazismo apoiar o nazismo? Como posso ser nazista? Diga isso ao meu avô, que passou toda a guerra na infantaria soviética, e depois morreu coronel na Ucrânia independente”. Nas redes sociais, Zelensky foi além e inverteu a mensagem de Putin: “A Rússia atacou traiçoeiramente nosso estado pela manhã, como a Alemanha nazista fez na Segunda Guerra Mundial”.

Putin tentou ludibriar as potências ocidentais com falsas promessas de diplomacia e procura atrair o apoio de governantes incautos ou ignorantes, como o presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Essa falta de compromisso com a verdade faz com que, no Kremlin, decisões tomadas de antemão sejam apresentadas como recentes. Tudo é parte de um teatro pensado para espalhar uma narrativa falsa. Ao anunciar a invasão, na madrugada da quinta, 24, Putin estava com o mesmo terno e gravata que usou em outro vídeo, divulgado na segunda, 21, em que declarou como estados soberanos as regiões de Donetsk e Luhansk, ambas localizadas em Donbas, no leste da Ucrânia. A decisão, portanto, já tinha sido tomada.

No evento televisivo da segunda, Putin contou com a presença de dois fantoches que se denominam separatistas. Um deles é Denis Pushilin, envolvido em fraudes com pirâmides financeiras e líder da autoproclamada República Popular de Donestk. O outro é Leonid Pacechnik, um ex-membro do serviço de segurança e agora chefe da autoproclamada República Popular de Luhansk. As duas áreas foram invadidas em 2014 por “homenzinhos verdes”, soldados russos sem uniforme oficial, para espalhar o caos. Nos conflitos que se seguiram até o cessar-fogo, 14 mil pessoas morreram. Ambos não têm credibilidade nenhuma. Foram escolhidos pelo presidente russo para figurar no roteiro em que a Rússia aparece como vítima e não como a agressora que é. Em um ato coreografado no Kremlin, os dois se sentaram em mesas ao lado de Putin e assinaram os documentos em que o presidente russo reconhecia suas regiões como estados soberanos.

A invasão desta quinta, 24, é o ápice de um drama encenado ao longo de vários meses, que incluiu a movimentação de mais de 150 mil soldados, o deslocamento de hospitais de campanha e de bancos de sangue para a fronteira com a Ucrânia. Em paralelo, desde meados do ano passado, Putin tem construído uma narrativa histórica para negar o direito do país vizinho de ser um país soberano, separado da Rússia. Na segunda, 21, o presidente fez um discurso na televisão em que culpava o fundador da União Soviética, Vladimir Lênin, pela independência da Ucrânia. “Como resultado da política bolchevique, emergiu a Ucrânia soviética, que ainda hoje pode, com razão, ser chamada de Ucrânia de Vladimir Lênin. Ele é seu grande arquiteto, e isso é totalmente comprovado por documentos, incluindo um decreto de Lênin de Donbas, que foi adicionado à Ucrânia”, disse Putin. “Agora, descendentes agradecidos têm demolido monumentos e estátuas dedicados a Lênin na Ucrânia. Isso é o que eles chamam de descomunização. Vocês querem descomunização? Bem, estamos bastante felizes com isso. Mas não parem na metade do caminho. Nós estamos prontos para mostrar a vocês o que de verdade significa descomunização para a Ucrânia.”

Putin inventou uma história em que não reconhece independência da Ucrânia
Para Putin, a Ucrânia pertence à Rússia. Segundo sua versão dos fatos, divulgada em suas falas e em seu artigo de 88 parágrafos no site do Kremlin, a Ucrânia sempre foi dos russos. “Desde tempos imemoriais, as pessoas que viviam no sudoeste do que historicamente tem sido a Rússia chamavam a si mesmas de russas e de cristãos ortodoxos”, disse Putin em seu discurso.

A Ucrânia moderna teria sido criada, segundo Putin, pelos bolcheviques após a revolução de 1917. Depois da guerra civil que se seguiu, a Ucrânia foi um dos membros fundadores da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a URSS. Porém, Lênin teria cometido um erro grave ao assimilar o país como uma república, assim como as demais, e incluir uma cláusula na Constituição da URSS dizendo que elas poderiam decidir se separar no futuro.Ao fazer isso, os autores plantaram na fundação do nosso estado uma perigosa bomba-relógio”, escreveu Putin, em seu artigo do ano passado. A explosão teria ocorrido com o fim da União Soviética, em 1991, quando a Ucrânia ficou independente. “O povo se viu no exterior da noite para o dia, expelido de sua pátria histórica”, escreveu.

A realidade, naturalmente, é outra. “Putin está tentando refazer a história da Ucrânia. O que ele fez é como se o presidente brasileiro escrevesse os livros que deveriam ser ensinados nas escolas paraguaias”, diz o advogado paranaense Vitorio Sorotiuk, presidente da Representação Central Ucraniano-Brasileira. Vários povos habitaram o território da atual Ucrânia desde 5 mil anos antes de Cristo. Durante a maior parte desse tempo, Moscou não passou de um banhado. O fim do império russo, em 1917, levou à constituição da Rada Central Ucraniana, um estado independente, que depois foi reconhecido como tal pelos bolcheviques. O país teve sua cultura, religião e idioma respeitados, mas padeceu sob o chicote do comunismo. Em 1930, Stalin obrigou a coletivização forçada das fazendas e promoveu um genocídio de milhões de agricultores. Expurgos eliminaram quase toda a intelectualidade. Com o fim da União Soviética, os ucranianos aproveitaram a oportunidade para ganhar a liberdade. Em um referendo em dezembro de 1991, cerca de 90% deles votaram pela independência. A separação ganhou em todas as províncias, até mesmo na península da Crimeia, ocupada pela Rússia em 2014. Hoje, o sentimento contra Moscou persiste. Nesta semana, antes da invasão, uma pesquisa apontou que 65% dos ucranianos defendem que o país entre para a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan, aliança militar de defesa do ocidente criada justamente para conter a Rússia. Eles querem ir na contramão de Putin.

No início deste ano, o presidente russo conseguiu que seu ressentimento contra a Otan fosse compartilhado oportunisticamente pela China. Após um encontro em Pequim com o ditador chinês Xi Jinping, no início de fevereiro, os dois publicaram uma declaração conjunta em que se opunham a uma expansão da Otan e pediam que a aliança abandonasse “suas abordagens ideologizadas da Guerra Fria”. Para a Rússia, que tem um PIB menor que o do Brasil, obter o apoio da China, com uma economia dez vezes maior, foi uma conquista relevante. Após a invasão da Ucrânia, a porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da China, Hua Chunying, esquivou-se de onze perguntas de jornalistas, que queriam saber se a China condenaria a Rússia. “Por que vocês estão obcecados com essa pergunta? Vocês poderiam questionar o lado americano. Eles continuam alimentando o incêndio… Vocês podem perguntar se eles têm algum plano para apagar o fogo“, disse Hua.

Hua também disse que a China vai começar a importar trigo da Rússia, o que deve ajudar o Kremlin a amortecer as sanções econômicas do Ocidente. Os dois países também assinaram um acordo para o fornecimento de gás natural da Rússia para a China. “Ao adquirir mais produtos russos, os chineses podem dar a Putin a tranquilidade necessária para navegar o mar de sanções que sofrerá em razão das ações na Ucrânia”, diz Marcus Vinicius Freitas, professor visitante da China Foreign Affairs University.

Os dois países ecoam o mesmo discurso em que promovem a ideia de um mundo multipolar, não mais dominado pelos Estados Unidos, e têm se sentido fortalecidos nos últimos anos. Primeiro, seus representantes assistiram ao ex-presidente americano Donald Trump criticar a Otan e ameaçar cortar seu financiamento. Em seguida, viram o atual mandatário, Joe Biden, ordenando uma desastrada retirada de tropas americanas do Afeganistão, que ficou nas mãos do grupo terrorista Talibã. No limite, a aliança entre Pequim e Moscou, o enfraquecimento da hegemonia americana e a invasão da Ucrânia seriam o marco de um novo equilíbrio mundial, em que a Rússia integraria o mesmo bloco da China, como um parceiro minoritário. Só faltaria nesse plano Pequim ocupar Taiwan. No outro bloco, estariam basicamente os Estados Unidos e a Europa.

Reprodução/TwitterReprodução/TwitterO presidente Zelensky comparou ação russa às invasões nazistas
Como, de 2014, ano da invasão da península da Crimeia, até agora, as sanções econômicas não foram suficientes para acalmar Putin, o Ocidente procura dobrar a pressão. O presidente Joe Biden anunciou medidas para causar danos à economia russa e prejudicar o financiamento da guerra. Americanos e europeus impedirão que a Rússia levante empréstimos para financiar sua dívida soberana. Os aliados ocidentais também não permitirão que a Rússia faça negócios em dólares, euros, libras e ienes na economia global. Haverá um esforço conjunto para reduzir a capacidade da Rússia de competir na economia de alta tecnologia do século XXI. As importações russas nessa área deverão cair para a metade. Vários bancos e oligarcas russos terão seus ativos congelados. “Eles compartilham dos ganhos das políticas corruptas do Kremlin e devem também compartilhar suas dores“, disse Biden. Na terça, 22, o chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, suspendeu a certificação do gasoduto Nord Stream 2, que levaria gás russo para a Europa sem passar pela Ucrânia.

O passo seguinte poderá ser excluir a Rússia do Swift, o sistema de comunicação interbancária que permite transferências entre 11 mil instituições financeiras ao redor do mundo. A medida dificultaria bastante que a Rússia recebesse pagamentos por suas exportações. A ação foi solicitada pela Ucrânia e pelo Reino Unido, mas não foi anunciada por Biden. “As sanções que estamos propondo terão mais consequências do que tirar a Rússia do Swift. Além disso, essa sempre será uma opção, mas essa não é a posição de todos os nossos aliados“, disse o presidente americano.

Ocorre que, com a guerra instalada e as sanções demorando para fazer efeito, o bloco do Ocidente fica em desvantagem. A Otan só poderia entrar para valer na briga caso um de seus membros fosse atacado, o que não é o caso da Ucrânia. Sem isso, pode apenas enviar armas e treinar os militares ucranianos. Putin ainda ameaçou, em uma nota oficial, usar armas nucleares estratégicas produzidas para atingir alvos específicos. “A minha impressão é que a Ucrânia será colocada de joelhos e os países ocidentais terão de recuar. Putin traçou uma linha vermelha, e muito dificilmente os russos recuam quando fazem isso”, diz o cientista político Marcelo Suano, professor de relações internacionais do Ibmec em São Paulo.

Se o Ocidente perder a Ucrânia para um autocrata movido por um nacionalismo anacrônico e o sentimento de vingança pelo fim do império soviético será difícil alcançar a mínima autoridade para impedir futuras invasões de território por ditadores. Mais do que isso: a guerra de Putin configura um golpe para as democracias, como bem frisou o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson. “Este ato de agressão impiedosa é um ataque não apenas à Ucrânia, é um ataque à democracia e à liberdade na Europa Oriental e em todo o mundo. Esta crise é sobre o direito de um povo europeu soberano e independente de escolher o seu próprio futuro“, disse Johnson. Depois que conquistou sua independência da União Soviética, em 1991, a Ucrânia se desfez de seu arsenal nuclear, o terceiro maior do mundo, em troca da independência. Eleições têm ocorrido sob a supervisão de observadores internacionais. Seis presidentes já foram eleitos democraticamente. A Ucrânia está mais bem colocada que o Brasil no ranking de liberdade de imprensa. A liberdade de associação é respeitada, e o país conta com 44 organizações em defesa dos direitos humanos e do meio ambiente. Pessoas LGBT podem realizar manifestações livremente, algo que na Rússia seria punido com prisão. São conquistas que agora podem estar ameaçadas. Na semana passada, a embaixadora dos Estados Unidos na ONU em Genebra, Bathsheba Crocker, enviou à organização uma carta dizendo que havia informações confiáveis sobre como Moscou tem pronta uma lista de jornalistas, defensores dos direitos humanos e dissidentes, que seriam torturados, assassinados ou enviados para campos de prisioneiros após uma ocupação militar. Entregar a Ucrânia para Putin será renunciar aos valores mais caros do Ocidente.

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